“Eight Dialogues” ou Quando um Falhanço se Torna Útil

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“Eight Dialogues”, o álbum editado agora pela Miso Records que junta o sintetizador Buchla de Armando Teixeira e o contrabaixo de Miguel Leiria Pereira, é uma configuração dos seculares conceitos de diálogo elaborados nos campos literário, teatral e filosófico. No território da música, e em particular da improvisação, é a forma mais óbvia de interacção por parte dos executantes envolvidos, não sendo, porém, a mais aconselhável e proveitosa – muito devido às limitações criativas inerentes à tradução das dinâmicas de uma conversação verbal entre indivíduos. Esta abordagem implica noções de reciprocidade, de flowing-through, de aclaramento de ideias por via da socialidade e da comunicação, estando implícito que os intervenientes são iguais, ainda que com personalidades distintas, e são livres, estando condicionados pela situação em si mesma, pelo tipo de discurso, pelo lugar a partir do qual se perspectivam as intervenções e pelas formas com que as subjectividades inter-relacionadas afectam o ou os outro(s) ou são por ele(s) afectadas.

Ao longo do tempo, vários entendimentos do que é um diálogo têm havido, desde a clássica (grega, platónica) procura de consenso ao bakhtiano (de Mikhail Bakhtin) segundo o qual as ligações que estabelecemos têm como propósito compreender algo que necessita de ser transformado, anunciando já – performativamente – essa transformação. O factor transformação, ou a sua ausência no caso deste disco, é chave: os oito diálogos que se sucedem, embora nos soando bem aos ouvidos (porque são “fáceis”), não têm qualquer dimensão disruptiva ou transformadora, ou melhor, não integram elementos contraditórios ou conflituais que possam chegar a conclusões ou, pelo menos, a interrogações edificantes. Teixeira e Leiria Pereira perseguem, em cada momento, uma directiva de concordância: o que um “diz” o outro “diz” também à sua maneira (a dos seus estilos pessoais em conexão com as diferentes tecnologias/técnicas instrumentais que utilizam), numa sucessão de trocas passivas e comprometidas, preocupadas apenas com a aquisição dos mínimos denominadores comuns que estabelecem um entendimento básico (e por isso ilusório) do que significa um “encontro” entre músicos improvisadores. Ora, Bakhtin sustentava que a improvisação não é uma metodologia de “resolução de problemas”, e sim de “colocação” dos ditos cujos…

Uma definição vaga do diálogo no contexto da música improvisada envolve um “ir-para-o-outro” enquanto motor da própria performance, o que significa que, nesse exercício (em consequência primeira desse exercício), há um cruzamento daquilo que é enviado simultaneamente em ambos os sentidos, cruzamento esse que é algo mais do que aquilo que se obtém com um simples sistema de pergunta e resposta ou de acção e reacção – um espaço de confluência ou de dissidência que está entre duas (ou mais) individualidades separadas e que constituem o coprotagonismo de qualquer agenciamento social (o da criação de música sendo um entre muitos, não distinguível nesse aspecto de outros que temos na vida de todos os dias). No caso de “Eight Dialogues” não há esse foco no outro e no percurso para o outro: tudo o que ouvimos parece pressupor de imediato essa ocupação do intervalo que emerge no “entre”. Os percursos (inter-)individuais detêm-se a meio do arco iniciado. Encena-se uma socialidade, mas esta não acontece, tão determinada está em cumprir um só objectivo: interagir pela mera interacção, surgindo esta como um referente vazio que, com estes condicionalismos, nunca é preenchido, ou seja, nunca nos conduz a um desfecho verdadeiramente actuante e problematizador. Porque é essa a opção, todos os desenvolvimentos tornam-se previsíveis: se um dos músicos faz “assim”, sabemos de antemão, regra geral, que o outro fará “assado”. De cada “assim” e de cada “assado” vem nada, só outros movimentos em espiral interrompida, inconclusivos ou que não duvidam, não indagam, não complicam, não complexificam, não desconstroem, não objectam.

Mas atenção: a música improvisada será, talvez, a mais expressiva arte do falhanço (uma arte com identificações que vão de Samuel Beckett a Miles Davis, e com formulações como esta: «Ever tried. Ever failed. No matter. Try again. Fail again. Fail better.»). Nenhuma improvisação tem o sucesso como garantido, e bem sabemos como, para se chegar numa determinada “peça” a cinco minutos de magia, é preciso passar por dez insignificantes e sem interesse. Assume-se à priori que para descobrir ouro é imprescindível partir rocha, e se não fosse esse trabalho tal prémio não surgiria – o que justifica toda a busca, por menos gratificante para a escuta que esta seja. O defeito de “Eight Dialogues” é também a sua virtude: mostra-nos que os processos (composicionais) da improvisação devem ir mais longe do que o horizonte dos seus mecanismos linguísticos e comunicantes mais primários, do que a sua tentação para a mimese da fala que se satisfaz com a concórdia e, ainda, do que as limitações ontológicas que lhe foram trazidas pelo branqueamento histórico da sua natureza social e política. É fundamental recordá-lo: a música improvisada nasceu no final da década de 1960 com o objectivo de contestar as instituições musicais vigentes e de propor, em consciência (uma consciência que se foi perdendo, improvisadores existindo hoje que não estão cientes do alcance e das razões da sua própria prática musical), um questionamento de tudo o que é dado como adquirido e assente.

Pois façamos com que esta edição, no seu não-questionamento, no seu tão evidente equívoco, na sua falha, nos traga esclarecimento e uma inflexão de estratégias, procedimentos, relacionalidades e propósitos. Mais do que um disco agradável, e mentiroso nessa sua agradabilidade, na representação do apaziguamento a que procede, este é um disco útil para compreendermos a pertinência, a urgência (para mais no contexto daquilo que se passa no mundo – por exemplo, no mesmo momento em que as sondagens na Alemanha indicavam uma maioria para a extrema-direita, alguém que tocava ao vivo num dos espaços mais conceituados da música improvisada nesse país recebia 8 euros pela sua actuação, e creiam que as duas coisas estão directamente ligadas pelas lianas do neoliberalismo autoritário) e a imprescindibilidade de… inquietar. Se dois improvisadores entrarem em acordo, isso só pode ser positivo e motivo de celebração, mas não devemos aceitar tal paz como uma presunção musicológica – lembra-nos a ingénua asserção de Rousseau de que o ser humano é “naturalmente” bom. Não é desse modo que a realidade funciona, como todos, afinal, sabemos.