Mais-do-que-humanos: “Sprouts In-Between”

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Há títulos que dizem tudo na sua só aparente ambiguidade: “Sprouts In-Between”. Tendo em conta o que vi e ouvi a 8 de Maio (e nos ensaios do dia anterior) no lisboeta TBA, este “in-between” em que se colocaram Adriana Sá, Atau Tanaka e Maria do Mar significa não só um “entre”, mas um “algures”, pelo que devemos entender os aludidos “sprouts” não como um substantivo (“brotos”) ou um adjectivo (“jovens”), mas como um verbo, significando “florir”, “germinar”, “florescer” ou “desabrochar”, com todas as inerentes implicações de movimento. O início aconteceu como uma emanação do negrume: acenderam-se três holofotes que revelaram três vultos brancos, três corpos que a luz colocou em cena e em acção. Do lado direito surgiram Sá e Tanaka, com este em respirações cada vez mais audíveis. Do esquerdo, Mar avançou com uma lenta coreografia inspirada no butô, feita de esgares e imobilizações. Encontraram-se no fundo do palco com os seus instrumentos – a zither e a parafernália electrónica de Sá, o sintetizador modular de Tanaka, que já transportava nos braços os eléctrodos do seu sistema, e o violino ligado a dispositivos de sinal de Mar – e a música foi crescendo do muito pequeno, do sussurro, a pouco e pouco. Já era claro que havia encenação, cenografia, figurinos, personagens e uma dramaturgia.

Ou seja, não se tratava simplesmente de um concerto, mas de teatro (que não propriamente o convencionado teatro musical), com a música, arte não-representativa por excelência, a inserir-se num âmbito mais alargado e com uma semiótica própria que tinha a representação – e uma mensagem implícita – como principal característica. Lembrei-me do que escreveu Eduardo Kohn em “How Forests Think”, resultado de uma estadia do investigador na parte equatoriana do Amazonas, a propósito da forma: «As formas são emergentes. Por “emergentes” não quero apenas dizer novas ou indeterminadas ou complexas. Refiro-me ao surgimento de propriedades relacionais sem precedentes que não são reduzíveis a nenhuma das partes constitutivas mais básicas de que surgem.» O antropólogo não falava propriamente de arte, mas de ecossistemas, por exemplo o ecossistema de um rio. Mas aplicava-se a esta apresentação de “Sprouts In-Between” num aspecto essencial que a arte pode ter com uma visão da natureza e do nosso lugar nela que vá para além do Antropoceno: «A forma não se impõe de cima; é simplesmente o que cai.»

O que ocorria diante de nós tinha uma estrutura previamente estabelecida por Adriana Sá: não uma partitura ou um conjunto de instruções precisas a seguir, mas uma timeline com seccionamentos e definições de pontos de início, fim ou transição e de tipos de intervenção (p. ex.: intensidades ou atmosferas). Tudo o mais era improvisado, com a performance pública a distinguir-se do que antes se fizera nos ensaios e estes a variarem igualmente entre si. A forma não se impunha, emanava dos conteúdos que se iam proporcionando. E de repente, foi como se a minha referência em Eduardo Kohn ganhasse justificação: um vídeo em 3D, criado em computador, colocou-nos diante de uma floresta artificial, com folhas em primeiro plano, ramadas e troncos surgindo atrás e, ao longe, em planos aéreos, um emaranhado de arvoredo e vida botânica, manchas verdes e castanhas deslocando-se em simultâneo para a direita e para a esquerda, num olhar primeiro e panorâmico que conduzia o nosso olhar. Florescências selvagens, ainda que sintéticas. Simulacros. Por baixo, junto às pernas dos artistas e sobre os panos brancos das suas mesas de trabalho, castanhos e laranjas sugeriam terra, chão, húmus. Se na anterior actuação de Ece Canli a tecnologia servira para a criação de um universo gótico e distópico coincidente com as perspectivas trans-humanistas do cyberpunk, neste caso propunha uma antropologia que ia mais além do que o humano, um pós-humanismo.

De forma empírica e performativa, o trio parecia aplicar o que Kohn chamou de “pensamento silvestre”, em resposta ao “pensamento selvagem” de Claude Lévi-Strauss: um pensamento que não visa um rendimento imediato e por isso não é especificamente prático, e sim a «propagação icónica, frágil e sem esforço de um pensamento auto-organizado que ressoa com o seu ambiente e que, deste modo, o explora». Um pensamento «no mundo» que «não foi domesticado por uma mente humana e pelas suas finalidades particulares». Deixo ao próprio Eduardo Kohn uma explicação mais detalhada: «Dado que a vida é semiótica e que a semiose está viva, faz sentido tratar tanto as vidas como os pensamentos como “pensamentos viventes”.» E como que fazendo zoom: «Os pensamentos gerados por um bosque vêm em forma de imagens. E uma imagem, seja nítida ou turva, “boa” ou “má”, tem a propriedade ontológica de uma simples totalidade cuja qualidade holística é, em termos formais, harmoniosa. (…) Conectarmo-nos com estes pensamentos silvestres e apreciar como se reflectem no nosso pensar requer que também pensemos por meio de imagens.» Ora, as imagens visuais de Adriana Sá chamaram-nos a atenção para o que a música tinha sido até aí e insistiria em ser: uma sucessão organizada de imagens sonoras, com os esboços de melodia, harmonia e ritmo introduzidos por Maria do Mar e Sá a serem constantemente interferidos pela electroestática, os feedbacks e as sinusoides de Atau Tanaka, todos em conjunto simulando um bosque. Florestando, portanto.

Os “eles-mesmos” deste bosque, isto é, as suas imanências vivas, os seus corpos materiais, surgiam como signos animados. “Sprouts In-Between” era uma «especulação metafísica» e uma «intervenção política», no sentido em que performava um princípio que Kohn anunciou como «aprender novamente a pensar com os bosques», de maneira a «”ecologizar” os nossos comportamentos éticos» e a imaginar (sonhar) outros possíveis. Sonhar é neste contexto outra coisa que não os sonhos de Freud, é entrar no mundo espiritual descrito pelo xamã runa Manari Ushigua, que Kohn cita no prefácio da edição argentina do seu livro em 2021: «Os humanos têm tsawanu, um espírito. Todas as plantas, o próprio bosque e a terra têm um tsawanu. Por meio do nosso tsawanu – a parte invisível da nossa vida – ligamo-nos com os demais seres do planeta.» Sá, Tanaka e Mar colocaram em prática esta ideia com uma semelhante abordagem psicadélica, mas se o fizeram adaptando as capacitações tecnológicas, de representação, de virtualidade e de simulacro ao dispor da sua arte, o professor da McGill University quis estabelecer uma nova ciência natural e humanística. Com a psicadelia em comum: «A etimologia grega deste termo (psyche: alento, espírito, mente; mais deluori: manifestar) ilumina a maneira como o conjunto ecológico dos seres vivos (kawsak) e pensantes (yuyayuk) que formam a selva (sacha) manifesta ou abre-nos uma mente emergente.»

O vídeo era interactivo, pelo que reagia a certos impulsos áudio. Uma determinada frequência fazia com que surgisse na projecção (na floresta) um enigmático cubo negro, com a mesma carga simbólica que tem o monólito do filme “2001, Odisseia no Espaço”, de Stanley Kubrick. Na minha interpretação, aquela figura semelhante a uma casa indicava a presença humana, mas essa casa desaparecia tão rapidamente como havia tomado forma, numa impressão de efemeridade. Era a floresta que persistia sobre o humano, embora não numa inversão do dualismo cartesiano que nos rege e separa o “natural” do “cultural”. Aqui, mais uma vez, a leitura de Kohn é esclarecedora, na página do seu ensaio em que argumenta sobre o multinaturalismo amazónico: «Existem muitas naturezas distintas, resultando das disposições corporais dos diferentes tipos de seres que habitam o universo. Cultura há só uma, uma perspectiva de primeira pessoa, do Eu que todos os eles-mesmos, tanto humanos como não-humanos, habitam.» Em “Sprouts In-Between” não significava tal que, para a floresta, a “habitação” humana fosse menor do que outras. Apenas havia a asserção de que a floresta existe independentemente de nós e das nossas necessidades. Na verdade, o povo runa entende que a selva é, para os espíritos, não uma selva, mas uma «horta», a horta de que são «donos».

O «reino dos donos espirituais» está, por definição, «sempre dentro da forma». A floresta é a forma, e se podemos percebê-la, se podemos imitá-la, como em “Sprouts In-Between”, «os animais que são abundantes por ali» não podem ser vistos pelos humanos, pois estes não têm, ainda, essa capacidade. Foi neste aspecto que incidiu o momento mais surpreendente e impactante de todo o espectáculo, aquele em que Atau Tanaka e Maria do Mar caminharam, dançaram e tocaram no interior do vídeo-bosque, simplesmente indo para trás da tela negra e transparente que ocupava toda a enorme largura da cena. Para os runa, a realidade do reino espiritual dos “donos” está DENTRO, em oposição ao reino quotidiano da humanidade, que está à SUPERFÍCIE. Tanaka e Mar entraram simbolicamente no mundo dos espíritos, corporizando estes – sendo possuídos por estes – na dramatização de um materialismo que tinha tanto de escatológico (a arte como manifestação do Outro, do Absoluto) quanto de hedonista, no sentido em que a sensorialidade e a sensualidade procuradas privilegiavam a obtenção do prazer que está na busca do belo. Mas há mais: a passagem de Tanaka e Mar pela floresta representou ainda a morte. Também segundo os runa da Amazónia, quando vão para dentro (para a selva), os mortos tornam-se livres, e livres porque, finalmente, passam a dominar o tempo, tomam o tempo, têm o tempo todo para fazer o que desejarem.

A música, neste composto transdisciplinar e intermediático, ocupava a quarta dimensão, precisamente a do tempo, forjando um processo de materialização e, simultaneamente, de manipulação daquilo que passa, daquilo que fica e daquilo que já não está. Às tantas, o bosque desapareceu, voltando a cenografia à escuridão e aos focos de luz sobre os gestos musicais. Pouco antes, o volume de som chegara ao máximo com os baques percussivos dos strobs de Adriana Sá e com o violino metalizado, mutante, de Maria do Mar a ecoarem na sala. Agora, descia-se gradualmente até aos patamares auditivos que tinham sido os do começo. Kohn escreveu sobre a “causalidade circular” dos bosques, sobre «as coisas que já passaram sem nunca terem passado». Pois esta peça lidou com o mesmo conceito do que é «sempre já», metendo na miudeza do instante a magnificência do que parece não ter fim e a repetição no que é abruptamente, entropicamente, de agora. Era a uma estrutura circular que assistíamos e o que parecia estar em fluxo não estava realmente, pois não havia uma sequencialidade determinista de causa e efeito – por haver uma arquitecturação circular essa ligação entre um antes e um depois era quebrada, ou melhor, o efeito iludia a causa, desmontando-a, fingindo que ia para a frente e que tinha um destino, quando não havia direcção, nem fim, nem “viagem”, somente a linha curva de uma circunferência a desenhar-se. Criou-se a ilusão de uma atemporalidade. Tudo era artifício, simulação, com o real e o virtual a serem representados – e a serem utilizados – como se um fosse o outro.

Adriana Sá, Atau Tanaka e Maria do Mar teatralizaram a transcendência humana e as suas dificuldades e (im)possibilidades, colocando-se num mundo pós-humano já não como inteiramente humanos (Eduardo Kohn: «Nós os humanos somos o produto dos múltiplos seres não humanos que nos constituíram e continuam a constituir. Os nossos corpos são vastas ecologias de seres.»), mas ainda não “mais-do-que-humanos”. “Sprouts In-Between” foi o nome apropriado para um teatro da transfiguração, uma «linguagem em expansão que incorpora termos de outros vernáculos», como nos dizeres de Kohn, que com certeza também teria visto e ouvido um bosque na blackbox do TBA.