MiaMar: ta meta ta phusika

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Para quem já sabia da existência deste novo projecto musical, as expectativas eram altas. E foram superadas com a antestreia (tão informal quanto periférica relativamente aos grandes centros de audição da música experimental / improvisada no nosso país e na Europa) do duo MiaMar no passado dia 29 de Junho em Atouguia da Baleia, concelho de Peniche, no contexto do MIA. A ocasião não poderia ter sido mais vibrante, dadas as entusiásticas reacções de uma audiência composta, maioritariamente, por outros músicos, como é hábito neste festival organizado por Paulo Chagas e Fernando Simões naquela vila do Oeste. E o que tivemos diante de nós? Dois violinos, duas vozes e dois corpos dando forma a uma música intensamente performativa (para não dizer “teatral”) que fez do seu materialismo (da sua fisicalidade, da sua elementaridade energética) uma metafísica, transportada para o além daquilo que não é humano ou que é mais do que humano nas delimitações tentadas por Benjamin, Sartre, Derrida, Merleau-Ponty, Negri, Deleuze, Haraway e Braidotti desde o século que passou.

Protagonizaram-no a austríaca Mia Zabelka – bem conhecida pelas suas colaborações com Pauline Oliveros, a mentora do “deep listening” quântico, com uma das fundadoras do pioneiro Feminist Improvising Group, Maggie Nicols, ou com Lydia Lunch, a eterna screamer do auto-empoderamento –, e a portuguesa Maria do Mar – artista cada vez mais transdisciplinar que ainda recentemente integrou as suas perspectivas ecofeministas e pós-humanistas, via minimalismo butô, no trio com Atau Tanaka e Adriana Sá que apresentou “Sprouts In-Between” no TBA. Em comum têm semelhantes referenciações no “embodiment” estético de Oliveros e duplas com a baterista Tracy Lisk, para além de um activismo social e político que se inscreve nas próprias tramas musicais.

Em acto no Conde Távora esteve o que posso designar como um ritual de sororidade: a encenação, espontânea e empírica, de um relacionamento horizontal, sem dinamismos de poder, sem organização hierárquica e sem espelhamentos patriarcais. Um espaço de pertença feminina, uma “heterotopia” (Michel Foucault) ou uma “zona autónoma temporária” (Hakim Bey) em que duas mulheres estabeleceram as bases de uma sociedade outra, igualitária e livre, unindo as premissas históricas da música improvisada e as provenientes das teorias feminista e queer num plano de apoio mútuo, unidade na diferença e solidariedade. Nos caudais entrecruzados havia inclusividade cultural (abertura a todo o tipo de materiais sonoros), partilha identitária (as experiências de vida de duas gerações distintas, em contexto de discriminação de género e de preconceito heterosexista) e motivação transformadora (era à aplicação de toda uma utopia o que estávamos a assistir). A chamada “arte do duo” surgia como o veículo ideal para esta expressão de irmandade: cooperação, reciprocidade, busca de equilíbrio e negociação contínua, não significando tal a construção de compromissos fixos.

Antes, no pátio do mesmo local, tinha acontecido um happening com as cadeiras da esplanada. Iniciado por Nuno Rebelo, o inesperado momento envolveu Fernando Simões e Maria do Mar em algo que esteve muito próximo do contacto-improvisação dançante. Mais adiante, Raquel Silva integrou um ralhete a Julian Davis Percy nas linhas traçadas pelo seu saxofone soprano em diálogo com o clarinete de Noel Taylor, assim criticando performativamente o “masculinismo” do volume sonoro do guitarrista australiano. Em outras ocasiões, Catarina Silva foi um exemplo de afirmação por contraste, bem como exemplar foi o sentido de nuance, subtileza e pormenor do já referido Rebelo, sempre retirando inusitados timbres da sua guitarra semiacústica. Foi outra coisa, de qualquer maneira, o que experienciámos com o arranque público do duo MiaMar: o divertimento, a crítica e a não-normatividade deram lugar a um autêntico manifesto. Não se tratava apenas de um concerto e não era somente uma performance: era a dramaturgia de um modo próprio de criar música, in-your-face sem dúvida, mas com uma semiótica que, regra geral, está ausente da improvisação praticada por homens.

E como faz sentido esta dupla entre Mia Zabelka e Maria do Mar! Ambas entendem o som como um fenómeno biológico: é o corpo o instrumento que utilizam, com o violino e o canto a surgirem como extensões dessa materialidade. Zabelka tornou mesmo este posicionamento numa filosofia: apresenta a sua música como sendo “molecular”, algo em que «o invisível é revelado: o movimento dos átomos, a oscilação das empatias químicas, o sussurro dos processos orgânicos». Também em Mar encontramos esta dimensão xamânica dos novos materialismos. A sua incessante procura de mais altos níveis de consciência não corresponde aos propósitos dos velhos idealismos; processa-se sensorialmente, sensualmente, remete-se para as circulações líquidas que dão vida ao seu corpo, para a água matricial que tem dentro de si e que é igualmente a água das árvores, das plantas, dos rios e do mar. A música é uma vibração hedonística da matéria. Carne feita gesto feita som feita entendimento (de si, dos outros, da natureza, do cosmos).

Não víamos os corpos dos sons enquanto reverberavam no ar, pois é no mundo sónico que começa a metafísica. Mas o que víamos nos corpos actuantes de Mia Zabelka e Maria do Mar, nos modos como se contorciam e nos esgares faciais, era a formação dos sons, a sua corporeização primeira antes de se tornarem “espírito”, a sua realidade perceptível, o que alcançávamos. O feminino como matéria e como, no Grego antigo, «ta meta ta phusika». Ou seja, «as coisas que vêm depois da física». Coisas que mexem com as mentes, havendo ainda alguma esperança no que possa resultar. (Foto José Félix da Costa)

MiaMar: ta meta ta phusika (English version)

For those already aware of this new musical project, expectations were high. And they were surpassed with the preview (as informal as it was peripheral in relation to the major hubs of experimental/improvised music listening in our country and across Europe) of the duo MiaMar, which took place on June 29th in Atouguia da Baleia, municipality of Peniche, within the context of MIA. The occasion could not have been more vibrant, given the enthusiastic reactions of an audience composed mostly of other musicians, as is customary at this festival organized by Paulo Chagas and Fernando Simões in that small town on the West coast.

And what stood before us? Two violins, two voices, and two bodies giving shape to a deeply performative music (not to say “theatrical”) that transformed its materialism—its physicality, its elemental energy—into a metaphysics, reaching into what lies beyond the human, or into what is more-than-human within the boundaries explored by Benjamin, Sartre, Derrida, Merleau-Ponty, Negri, Deleuze, Haraway, and Braidotti since the last century.

The protagonists were Austrian Mia Zabelka—well known for her collaborations with Pauline Oliveros, the mentor of quantum “deep listening,” with Maggie Nicols, one of the founders of the pioneering Feminist Improvising Group, and with Lydia Lunch, the eternal screamer of self-empowerment—and the Portuguese Maria do Mar—an increasingly transdisciplinary artist who recently incorporated her ecofeminist and post-humanist perspectives, through Butoh minimalism, in the trio with Atau Tanaka and Adriana Sá, which presented Sprouts In-Between at TBA. What they share includes similar roots in Oliveros’s aesthetic embodiment and in their respective duos with drummer Tracy Lisk, as well as a social and political activism that is embedded in their very musical fabric.

What unfolded at the Conde Távora was something I would describe as a ritual of sorority: the spontaneous and empirical staging of a horizontal relationship, devoid of power dynamics, hierarchical organization, or patriarchal mirroring. A space of feminine belonging, a “heterotopia” (Michel Foucault), or a “temporary autonomous zone” (Hakim Bey), where two women laid the foundations for another kind of society—egalitarian and free—blending the historical premises of improvised music with the tenets of feminist and queer theory into a framework of mutual support, unity-in-difference, and solidarity. Within their interwoven flows, there was cultural inclusivity (an openness to all types of sonic material), identity sharing (life experiences from two distinct generations, in the context of gender discrimination and heterosexist bias), and a transformative drive (what we were witnessing was the enactment of an entire utopia). The so-called “art of the duo” emerged as the ideal vehicle for this expression of sisterhood: cooperation, reciprocity, pursuit of balance, and continuous negotiation—none of which implied the construction of fixed commitments.

Earlier, in the same venue’s courtyard, there had been a happening with terrace chairs. Initiated by Nuno Rebelo, the unexpected moment involved Fernando Simões, João Pedro Viegas and Maria do Mar in something that bordered on dance-based contact improvisation. Later, Raquel Silva confronted Julian Davis Percy mid-performance with a performative scolding, tracing lines with her soprano saxophone in dialogue with Noel Taylor’s clarinet, criticizing the “masculinism” of the Australian guitarist’s volume. On other occasions, Catarina Silva asserted herself through contrast, while Nuno Rebelo (again) stood out for his nuanced, subtle, and detailed sensibility—always pulling unexpected timbres from his semi-acoustic guitar.

Still, what we experienced with the public debut of MiaMar was something else entirely: amusement, critique, and non-normativity gave way to a true manifesto. This wasn’t just a concert, nor merely a performance—it was the dramaturgy of a distinct way of making music, unapologetically in-your-face, but with a semiotics usually absent from the male-dominated improvisation scene.

And how much sense this pairing of Mia Zabelka and Maria do Mar makes! Both approach sound as a biological phenomenon: the body is the instrument they use, with violin and voice appearing as extensions of that materiality. Zabelka has even made this perspective a philosophy, presenting her music as “molecular,” something in which “the invisible is revealed: the movement of atoms, the oscillation of chemical empathies, the whisper of organic processes.” In Mar we also find this shamanic dimension of the new materialisms. Her unrelenting pursuit of heightened consciousness is not aligned with the aims of old idealisms; it is sensorial, sensual, rooted in the liquid circulations that give life to her body, to the matrixial water within her, which is also the water of trees, plants, rivers, and the sea. Music, here, is a hedonistic vibration of matter. Flesh become gesture become sound become understanding (of self, of others, of nature, of the cosmos).

We could not see the bodies of the sounds as they reverberated in the air, for it is within the sonic world that metaphysics begins. But what we did see, in the acting bodies of Mia Zabelka and Maria do Mar, in the ways they twisted and contorted, in their facial expressions, was the formation of sounds—their primary embodiment before becoming “spirit,” their perceptible reality, what we could grasp. The feminine as matter and as, in Ancient Greek, ta meta ta phusika. That is, “the things that come after physics.” Things that stir the mind, still leaving us with some hope for what may yet emerge. (Photo: José Félix da Costa)