Imersão: coincidências

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Dizia Einstein que as coincidências são a maneira de Deus permanecer anónimo. Independentemente de acreditarmos ou não em alguma divindade, o certo é que as coincidências, quando acontecem, nos deixam desarmados – pode Johan Cruyff achá-las “lógicas”, mas significam para nós um mistério insondável, expressão de algo que nos ultrapassa, que não cabe na nossa humana racionalidade. Calhou que dois livros sobre som e música tivessem sido lançados na mesma altura do ano que findou, e que um (“A Experiência Sonora – Da Linearidade à Circularidade”, Documenta, vários autores) terminasse com o tema da Imersão, enquanto o outro (“A Body as Listening Ressonant Cartography of Music (Im)materialities”, ed.­­­___ Sistema Solar, Joana Sá) por aí comece. A raridade da edição em Portugal de obras versando questões musicais mais realçaria este factor, não fosse a circunstância de a arte dos sons o ter como uma particularidade neste nosso presente: a de nos pretender submergir nas suas tramas. Esta última coincidência, porém, é explicável, e explica-se bem nestas edições saídas nos derradeiros meses de 2023.

É João Manuel Marques Carrilho, conhecido nos circuitos da música electrónica como Jonas Runa, quem, no capítulo final (“Imersão, Transparência e Desaparecimento: Uma Estética Paradoxal”) de “A Experiência Sonora”, fixa a sua atenção na qualidade imersiva da percepção e da informação, numa perspectiva globalizada que, se funciona como uma epistemologia da música, é, mais profundamente, uma epistemologia da estética. A música surge como parte de um todo, um todo que é político, económico, antropológico, psicológico, social e mais, antes de se especificar como arte. Neste texto, Carrilho faz produção de pensamento, filosofia. Só outro, no tomo, tem essa caracterização: o de Luís Cláudio Ribeiro (“O Som e a Voz: Uma Teoria da Experiência”), que é também o coordenador desta compilação. Todos os demais, de António de Sousa Dias, David Novack (ambos sobre o som no cinema), Raquel Castro (arte sonora), Mohammed Boubezari (espaço sonoro, arquitectura), Adriana Sá (mediação e expressão sonora) e Gonçalo Gato (composição) são formulações de conhecimento aplicado, de técnica por assim dizer, recorrendo ao exemplo e à experiência como fundamentos da reflexão urdida. Ou seja, este é um livro utilitário.

«This book is a hole where you might fall in except that there is no hole but still you might fall in except, again, that you could not fall as expected – falling in a hole you being yourself, the hole being a hole a big mess: loss of gound, the impact of your body against» – estas são algumas das primeiras linhas (circulares, serpenteadas, sublinhe-se) de “A Body as Listening…”. Fica desde logo atestado que o leitor-ouvinte (ouvinte sim, porque esta obra de Joana Sá é não só uma parcela de um palimpsesto criativo que inclui uma instalação em dois formatos, virtual e presencial, uma performance musical, um disco a solo e conferências performativas várias, como inclui em si mesmo uma série de QR Codes que nos conduzem até à música da autora) tem de mergulhar nas águas daquele que é um poema filosófico sobre o corpo (físico, instrumental, musical, de escuta) e o espaço, numa articulação visual e concretista em que dois livros coexistem num apenas, um fluindo nas páginas pares e o outro nas ímpares, por vezes coincidindo na leitura para logo novamente se soltarem. Um pouco como se se tratasse de um piano, numa complementar autonomia da mão esquerda e da mão direita que é assaz curiosa quando sabemos que Sá tem uma relação extrapolativa com o teclado, não se entendendo especificamente como “pianista” – assim como não se entende especificamente como “compositora” ou como “performer”, até porque compor é performar e performar é compor.

Trata-se, este “A Body as Listening…” em papel, de uma melopeia pensante, uma autoanálise da sua música, em todas as multidimensionalidades corporais implicadas. Na desmontagem e desconstrução prismática que é realizada, o conceito parece ganhar maior relevância, mas acontece que o vector conceptual de Joana Sá é, de raiz, uma práxis: o que está em causa são as suas imanências, as suas (i)materialidades, os seus afectos. Neste sentido, o que temos aqui é uma filosofia aplicada da música, uma utilidade. Para nós, permite uma melhor compreensão das razões e resoluções do que lhe ouvimos. Para Joana Sá é a forma de se entender e de definir o que procura. Em “A Experiência Sonora” essas vertentes estão separadas, em “A Body as Listening…” completam-se numa e esse é um dos motivos do brilhantismo deste volume.