Uma característica dos labirintos que tem a maior relevância é o facto de os seus caminhos serem por si mesmos as delineações e as fronteiras, e não propriamente as sebes ou os muros que os afastam. Está neles a estrutura, o esqueleto, que os espaços ganham quando vistos por cima ou em mapa. Nesse sentido, tais caminhos-separações não poderiam proporcionar entradas, passagens e saídas: se o fazem, na prática dos passos, é como se tais percursos inexistissem, o que é a verdade última que um labirinto proporciona, seja na forma de um jogo para crianças ou o literário, de espelhos, de duplos, de simulacros, imaginado por Jorge Luis Borges.
Um dos discos das fornadas finais de 2023 da editora Creative Sources ostenta um labirinto quadrado na capa de “Conundrum”, tocado por Ernesto Rodrigues (violino), Guilherme Rodrigues (violoncelo) e Nuno Torres (saxofone alto) com os convidados Alexander von Schlippenbach (piano) e Willi Kellers (bateria). A música dentro é enigmática, confirmando o que é prometido visualmente e pelo título: estão nela a confusão e a dificuldade antecipadamente identificadas. Tem, no entanto, duas vertentes fundamentais, que podemos definir como as curvas para a direita ou para a esquerda de uma caminhada labiríntica: ora estamos em território pós-serialista (e neste aspecto é preciso ter em conta que Schlippenbach estabeleceu muita da sua arte pianística sobre o serialismo dodecafónico), ora entra-se em terrenos mais explicitamente free-jazzísticos (“Cila”, o segundo tema do álbum, chega-nos com uma pulsação fixa, introduzida por Kellers já numa altura da faixa em que julgamos que o rumo será outro). Quando sobressai um destes formatos, pensamos que o labirinto se resolve, que se encontrou o trajecto certo entre os obstáculos e deixamos de ser condicionados, podendo finalmente retomar a soberania das nossas pisadas.
Mas é um engano. Regra geral, pós-serialismo e free jazz coexistem nestas improvisações colectivas, numa transversalidade paradigmática que nos conduz por uma, ora divertida, ora angustiante, incerteza: pouco do que parece, é. Trata-se de uma música de divergências, de conflito, onde por vezes julgamos encontrar situações ou soluções comuns, ainda que sem termos confiança no que os ouvidos nos fazem perceber. Estabelece-se um labirinto dentro do labirinto, um labirinto perceptivo, apenas nosso, que não desde logo inscrito nos propósitos musicais. Quer isso dizer que é connosco, ouvintes, que a música de “Conundrum” se completa: um labirinto vai ao encontro de outro, melhor, proporciona o outro mais do que o predispõe, e precisamente pelos factores reconhecimento e estranheza.
Podemos encarar “Secrets Under Trees”, do trio formado por Guilherme Rodrigues com Carlos Bechegas e Ernesto Rodrigues, como outra proposta de trânsito labiríntico. Imaginamos (ou somos levados a imaginar) árvores, mas as raízes destas constituem algo que não figuramos, algo que está em baixo do solo e só podemos conjecturar. A combinação de uma flauta (Bechegas) com dois cordofones de arco não é das mais habituais na música de câmara dos séculos XX e XXI, e ainda será menos no âmbito da livre-improvisação, mas podemos rastrear de onde estas organizações sonoras provêm, desvelando pelo menos alguns dos segredos que dão nome ao disco: há algo da Sequenza flautística de Berio, algo de Takemitsu, sobretudo algo das composições para flauta de Emmanuel Nunes, de quem é devedora, aliás, uma boa parte do universo musical de Ernesto Rodrigues. É por isso que a escuta do longo “Despite the Storm” se torna vertical/gravitacional, enquanto a das pequenas peças de “Conundrum” é horizontal: ouvimos para cima e esse ouvir desce-nos para baixo, com as ramadas a empurrarem-nos para a terra. Depois, na tentativa de sentir por inteiro, viramos novamente os ouvidos para o alto. E o que temos é uma música sem origem certa.
De onde vêm estes sons, na verdade? A flauta é aérea, é um instrumento de vento, e as cordas são (de) madeira, são tronco: diferentes naturezas e propriedades que buscam uma relação. Há ventos que vêm da madeira, que parecem emergir dela, e sonoridades de madeira que se evaporam num sopro. Neste labirinto que não vemos, que adivinhamos apenas, só não ficamos mais perdidos porque há algo de muito parado (os labirintos físicos e conceptuais implicam sempre movimento), de muito presencial, a que inevitavelmente nos agarramos: as árvores. As referências a Berio, a Takemitsu, a Nunes, são troncos situacionais, ainda que por mera aproximação. Sem elas, estamos no escuro. É essa a grande oposição entre os dois álbuns: “Secrets Under Trees” é nocturno e “Conundrum” vive da luz do dia. Resulta que tudo é uma questão de luminosidade.