Morreu a 7 de Janeiro de 2024, com 90 anos, e posso dizer que era meu amigo. Quando entrava numa sala, com os olhos a apanharem todas as caras, todos os cantos, era certo e sabido que vinha a mesma pergunta de um ano antes: «What’s up?». Tínhamos de o pôr em dia, porque ele queria mesmo saber, apesar de conhecer outras centenas, milhares de pessoas pelo mundo fora – e não, nunca se esquecia de ninguém. Durante 20 anos, com a Bolsa Ernesto de Sousa (BES) – de que fui um dos fundadores e membro do júri permanente –, foi assim. Reencontrávamo-nos e era como se não tivesse passado tempo algum entre cada encontro. Isto quando o Phill Niblock não ficava por Lisboa mais demoradamente. Num desses anos permaneceu muitos meses e chegou a ser meu vizinho na Parede.
Vários músicos e artistas de Portugal foram privando com ele, para além daqueles que iam ganhando a Bolsa e passavam, entretanto, uma temporada em Nova Iorque sob a mentorização deste compositor, cineasta, videasta e fotógrafo norte-americano que foi (e é, porque a sua obra está disponível para quem a queira ouvir e ver) uma das figuras maiores do minimalismo, e não só. Aí preparavam um espectáculo intermediático que era apresentado no seu A Festival With No Fancy Name e tinham a oportunidade de trabalhar com figuras que ele lhes apresentava, indo de Anthony Braxton a Thurston Moore. Uma dessas pessoas foi Carlos “Zíngaro”: era enorme o respeito que tinham um pelo outro e os seus diálogos eram de supremo interesse. Ao lado, eu absorvia tudo.
Ano após ano, eu ouvia-o em milhentas conversas durante as deliberações do júri – de que ele era o presidente, representando a anfitriã Experimental Intermedia Foundation – e nos muitos almoços, jantares e saídas nocturnas (bebia invariavelmente um uísque, de que era grande apreciador) que partilhámos. Mas também ele me ouvia a mim: apesar de eu ser tão jovem, ele considerava-me e isso encantou-me. Era um homem de uma cordialidade gigantesca, sem pinga de ego, sem sobrancerias, trocista por vezes, mas generoso como poucos seres humanos, empático, genuinamente interessado nas pessoas que o rodeavam. Mas sabia o que queria e não fazia rodeios em insistir no que tinha na ideia. Por um par de vezes não concordámos com o mesmo candidato como potencial vencedor da BES. Acabei por compreender a sua lógica: por vezes não era uma questão de quem tinha o melhor projecto artístico e o melhor perfil, mas de quem tiraria melhor proveito da estadia nova-iorquina. Ele via mais longe, era-lhe natural. Queria lançar sementes à terra, pegar em artistas que fizessem as coisas de outra maneira, mesmo que ainda tentativamente.
O Phill parecia passar incólume entre os pingos da chuva. Não o incomodavam muito os obstáculos, arranjava sempre maneira de os ultrapassar. E mesmo quando se aborrecia, logo lhe surgia a solução para ultrapassar o problema. Numa das suas vindas a Portugal, a Granular, associação cultural que mobilizou a cena experimental lisboeta durante os seus 11 anos de existência, agendou uma data com ele num festival que teve programação do “Zíngaro” e minha. Ele seleccionou algumas das suas peças electroacústicas e em cada uma havia músicos nacionais a fazerem a parte “live”, improvisando com os mesmos instrumentos de cujos timbres havia partido para as compor. Habituado que estava a longas actuações (os seus concertos de solstício demoravam de seis a 12 horas) não pensou no factor duração. Mas estávamos no auditório do Centro de Arte Moderna da Gulbenkian e os técnicos têm horários fixos de saída e o próprio espaço horas definidas de fecho. Fomos pressionados a dar termo à sessão, e julgo que terá contribuído para tal o facto de os funcionários da casa estarem visivelmente incomodados com os altíssimos decibéis, tão necessários para obter os característicos choques de frequências da sua música.
Tive a difícil tarefa, que muito me envergonhou, de chegar ao Phill e dizer-lhe que tínhamos de cortar a setlist e que isso poderia implicar que alguns dos portugueses não pudessem participar. Primeiro ficou compreensivelmente contrariado, mas depois juntou quem ainda não tinha tocado, escolheu outra composição em que conviviam os harmónicos de vários instrumentos e o resultado foi fantástico. Talvez tenha sido a melhor parte da noite, confirmando a minha noção de que, por vezes, o que há de mais precioso na música é aquilo que não foi intencionado.
Mas não é esse incidente com desfecho feliz que guardo na memória quando primeiro me lembro do Phill, e sim uma ocasião em que tudo o que aconteceu foi exactamente o que ele tinha previsto. Estávamos na black box da Fábrica da Pólvora, filmes seus de trabalho manual repetitivo eram projectados à direita e à esquerda e a música vivia sonicamente todo o esplendor dos overtones que mudavam consoante o sítio onde nos encontrávamos. O tempo suspendia-se, devido aos drones que iam ondulando (lentos, estáticos até, se bem que contendo dentro de si pequeníssimos e rápidos eventos), e o espaço era invisível no negrume, com as imagens a brilharem no vazio com as suas cores e formas. Aquele era um não-tempo, um não-lugar. Senti-me a sair do meu próprio corpo. Também eu vogava por ali, em êxtase, totalmente entregue ao que sentia. Foi uma experiência psicadélica, surreal, e de uma tal intensidade que me levou a acreditar que é possível uma transcendência. À frente dos seus dois laptops, Phill Niblock dormia.
Agora que o meu amigo já por cá não anda, quero acreditar que está numa black box do céu, mergulhado em sons e imagens sem que ninguém lhe diga para parar. É o que digo para mim neste adeus: as experiências sensórias que fez ao longo de décadas eram somente preparações para esse grande show eterno ao encontro da música das esferas. (foto Ariette Armela)