Julius Gabriel e o saxofone soprano gémeo

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Dei uma vista de olhos pelas (poucas) listas de melhores concertos de 2023 e este não consta. Não me surpreende: foi a primeira parte de uma double bill que tinha como foco principal a música clássica carnática de Sumanth Manjunah, e esta actuação não cabia em nenhum género musical que temos por cá como estabelecido. Os dois concertos tiveram lugar na ZDB a 10 de Dezembro passado, naquela que foi uma das paragens da pequena digressão que Julius Gabriel e o violinista indiano fizeram na altura por Portugal. A particularidade foi que, neste de Lisboa, o saxofonista berlinense que já viveu no Porto fez-se acompanhar pelo parceiro de Manjunah, Yashwant Hampiholi, no mridangam. Os anteriores tinham sido a solo, a exemplo do da noite imediatamente antes, na SMUP. Assisti a vários gigs durante o ano, alguns especialmente bons, mas este encheu-me as medidas.

Porquê? Gabriel passara três meses na Índia, estudando com Sumanth Manjunah e no Indian Music Experience Museum de Bangalore, e as peças que apresentou tinham os ragas como fundamento. Eram um híbrido entre o avant-jazz e a improvisação experimental que são próprios do saxofonista, desta vez sem recorrer à electrónica, e o universo musical do Sul da Índia. Apresentou-se com dois instrumentos entre os vários que domina, o saxofone tenor e aquele a que chama de “saxofone soprano gémeo”, munido de um bordão recto para graves, que utilizou para tocar drones semelhantes aos da tambura, em determinada altura ainda adicionando uma extensão para chegar a timbres mais baixos. Recursos particularmente interessantes de um artista que vem procurando sempre ir mais além com as fórmulas que adopta.

Sentado nas madeiras do palco, de pernas cruzadas, Julius Gabriel fez um vasto uso percussivo dos sopros, fazendo soar as chaves para obter as tramas rítmicas em que o conjunto se alicerçava, com Hampiholi a sublinhar ou a estender as situações, conotando-as directamente com a música indiana, num curioso equilíbrio entre o exploratório e a tradição. No outro extremo estavam as melodias, belas, imediatas, simples nos contornos, mas altamente eficazes, a um nível pop ou folk até, parecendo que era fácil uma música que se distinguia pela sua complexidade e pelas técnicas invulgares. Tudo era uma questão de linguagem, e esta foi construída ao vivo, sem rede, a partir de contrastes, de reminiscências de outras linguagens.

Se o factor virtuosismo está conotado, no Ocidente, com o domínio instrumental da música de Conservatório, Gabriel demonstrou que pode haver virtuosos em práticas não-conformistas, e essa foi uma das mais-valias desta performance. Se Sumanth Manjunah é um virtuoso do violino, como ficou comprovado, o músico que já ouvimos com Paisiel (ao lado de João Pais Filipe), Ikizukuri (com Susana Santos Silva, Gonçalo Almeida, Gustavo Costa), as bandas portuguesas Solar Corona e Glockenwise ou About Angels and Animals e The Dorf (ambos com Jan Klare), não lhe ficou atrás.

A dupla sessão durou três horas, nas duas últimas, protagonizadas por Manjunah e pelo incansável Hampiholi, com um superatento Julius Gabriel encaixado na primeira coxia. Fiquei depois a saber, pelo próprio, que os temas que (re)interpretara vão sair em disco brevemente. É bom que fiquemos atentos, pois temos aqui um óptimo exemplo de que ainda não se criou tudo o que se pode criar musicalmente. Quem julgar que sim, mudaria de ideias se ali estivesse. Pois, para mim foi este o melhor concerto do ano.