No final do seu concerto na Culturgest, a 12 de Janeiro de 2024, Joana Sá agradeceu com os braços abertos, parecendo envolver-nos a todos, corpos-ouvintes. Mas como é habitual na sua arte, há outros sentidos e camadas: num braço tinha escrito “Stop”, no outro “Genocide”. Aludia ao que estava e está a acontecer na Faixa de Gaza, precisamente naquele momento e neste agora em que escrevo: mutilação de uma cultura, de uma etnia, e morte física de milhares. Já não era um simples ritual de despedida do público: a performance continuava. Muitos comentários se ouviram logo depois, no foyer do Grande Auditório, sobre o quão sombria tinha sido a música, bem diferente daquilo que já lhe ouvíramos. Naturalmente: o corpo-Joana Sá, corpo-compositora e corpo-performer, é empático com o corpo-mundo e o facto é que, neste tempo de horror, temos estado a assistir a um crime contra a humanidade a que um artista não pode, nem deve, ficar indiferente. Ela deu um exemplo de cometimento, numa actuação que foi interveniente e de protesto, que não apenas de uma afirmação pessoal, de um conceito músico-filosófico e de uma práxis.
“Corpo-Escuta”, ou “A Body as Listening” (parte performativa de uma obra muito mais larga que compreende um livro, “A Body as Listening – Resonant Cartography of Music (Im)materialities” (ed_____ Teatro Praga / Sistema Solar), um disco com o mesmo título (Clean Feed) e uma plataforma virtual, abodyaslistening.com, e que, no ano passado, integrou ainda uma instalação e uma conferência-performance), foi todo ele construído a partir da ideia de ressonância: corpos que soam ou fazem soar, chegando à literalidade de Joana Sá colocar um microfone no peito para lhe ouvirmos os batimentos do coração, uns agudos, outros graves, em conjunto ou separados pela mesa de mistura. Estávamos dentro do seu corpo, e ao mesmo tempo o corpo era a sala, esta funcionando como uma câmara de ressonância. Já o piano tinha sido assim tratado: notas ou acordes mais fortes ou mais rápidos disparavam sons electrónicos, entre processamentos em tempo real de um instrumento que já por si estava preparado, ou seja, sonicamente alterado, e gravações electroacústicas ocasionalmente introduzidas em que, por vezes, distinguíamos vozes. As quais ficaram mais explícitas na conclusão coral.
Foi um espectáculo total, de múltiplas dimensões e, necessariamente, transdisciplinar, tendo como eixo os movimentos de Joana Sá em palco, desde as mãos que desciam até ao teclado e subiam no ar até aos seus passos leves e miúdos nas madeiras – um contraponto de vulnerabilidade em relação à imensidade sonora que algumas vezes se fez sentir, numa coreografia estabelecida com Teresa Silva. O contrário também esteve em causa, quando o seu coração substituiu o piano, em manifestação de força e vitalidade, e quando, no final, surgiu a reivindicação anti-sionista. A cargo de Daniel Costa Neves, as mudanças das luzes funcionaram como partições, planos, ora tremeluzindo como uma pequena lâmpada no meio da escuridão, ora enchendo o espaço de cor, regra geral o vermelho, o azul e o roxo.
Corpo-escuta, de facto, mas também (e por isso, em efeito de implicação) corpo-criação, corpo-artista, corpo-instrumento, corpo-música, corpo-público. Também nós participávamos naquele novelo, e a verdade é que o silêncio da plateia era abismal. Concentração máxima, atenção, foco: para todos os efeitos, o que ali se moldava, «touching at a distance», era a percepção, a nossa percepção – esse era o factor procurado e intencionado, a razão da viagem. Mesmo o piano (com desenho e operação de som de Suse Ribeiro) vogava em diversos níveis, ora sobre-amplificado, e tanto assim que o que ganhava relevo era a percussividade dos pedais ou a acção dos martelos (o “beating body” de Roland Barthes?), ora numa entrega intimista, quase na fronteira com o silêncio, transparecendo por vezes nos fluxos não-lineares, desconstrutivistas, referências como Erik Satie e o impressionismo. Um Satie e um impressionismo disruptivos, «as disruption of meaning – by means of discontinuity, break, suspension of sense (…) disruption as a mechanism for unshaping/shaping the body of music (…) to resound itself another», como lemos no livro, muito, muito longe do uso da música desse compositor como ferramenta para relaxação.
Corpos cruzados e em choque, portanto. Em ocasiões agindo por conflito, noutras por convergência. Ou até envolvendo esses comportamentos em simultâneo, porque a música e o pensamento da música de Joana Sá exploram tais duplicidades e ambiguidades. Corpos também em adição e subtracção. O mesmo piano prolongava-se em sonoridades não-pianísticas ou desaparecia, dando lugar a outros corpos sonoros. No termo do concerto até Joana Sá, o corpo-artista, saiu de cena, mas com os restantes corpos a marcarem a sua ausência como uma presença imaterial. De particularidades assim, umas subtis, outras impactantes, «spreading through different dimensions of senses, extra-senses, ultra-senses, non-senses», se fez a noite. Ficou outra mensagem por detrás da política: o afecto. Os corpos em interacção afectaram-se entre si. O afecto é próprio do corpo. O afecto é próprio da música. O afecto bem pode ser o que nos resta num mundo que parece prestes a desabar. Este é um projecto altamente inovador, por ir a esse âmago das questões, esse zoom in que resultou dos seus estudos com Jean Fassina, e com certeza fará história. Nunca nada assim fora realizado em Portugal. Tem esse tamanho, gigante. (foto Vera Marmelo)