“Defiant Ilussion”: um disco operado pelo millenium bug

Partilha nas redes sociais

O acaso tem as suas próprias lógicas e justificações. Calhou que o título do álbum conjunto de Carla Santana, José Lencastre, Maria do Mar e Gonçalo Almeida editado pela A New Wave of Jazz de Dirk Serries saísse na sua edição física (também está disponível no Bandcamp, sem enganos) com um erro ortográfico no título da capa, “Defiant Ilussion” em vez de “Defiant Illusion”, para que a música nele contida ganhasse maior sentido. Nele não se “dizem” as coisas como ficou linguisticamente definido – fala-se ao lado, alternativamente e com outros significados, ainda que tendo sempre como referência o considerado certo. Para usar outra analogia: não é o negativo “verdadeiro” de uma imagem que na impressão surge modificada e sim uma alteridade original no universo entrópico do possível. A fórmula auditiva “Defiant Ilussion” reenvia-nos directamente para a ideia de acidente de Paul Virilio, ou melhor, de millenium bug, esse ambiente pós-industrial e globalizado da contingência de que este disco é uma manifestação.

Nos breves esquissos (à excepção do mais demorado “The Way of Zen”) que compõem esta edição, todos eles não resolvidos, não completados, o que encontramos são contraposições: há sempre algo que vem contradizer os fluxos sonoros tomados. Regra geral esse papel é desempenhado pelo contrabaixo de Almeida e, em ocasiões, também pelos saxofones de Lencastre, opondo-se às urdiduras analógico-digitais de Santana e violinísticas de Mar. No quadro deste quarteto de forças, José Lencastre como que se coloca a meio, pendendo ora para a abstracção textural ora para o figurativismo dos motivos; é como que o fiel da balança na avaliação de dois pesos distintos. Neste conflito criador ninguém, assim como nenhum componente da música, sai vencedor: o interesse da proposta vem precisamente dessa condição indefinida e adversa que fica reiteradamente em aberto.

Não estranha que esse jogo de empate passe pelos idiomas. Em desafio estão as formas do jazz, versão free, e as formas de uma música livremente improvisada consciente de que se constituiu como uma estética própria e independente, dissipada que está a utopia “não-idiomática” de quando se queria apenas como uma técnica. Gonçalo Almeida e, por vezes, José Lencastre vivificam os sintagmas do jazz, Carla Santana e Maria do Mar derivam a primeira das músicas electrónicas lowercase e noise e a segunda da música contemporânea e suas reminiscências clássicas. Ou seja, depois das experiências da fusão e da colagem no século que passou, repõe-se aqui a diferencialidade dos idiomas como sustento de um processo de construção, desconstrução, reconstrução e nova desconstrução que se repete em ciclos, todos esses factores ocorrendo a espaços ou simultaneamente. Em “Defiant Ilussion” deixam de existir mínimos denominadores comuns, uniões “politicamente correctas” ou consensos tácticos.

Esta luta que se tem a si mesma como fim, numa mimetização arty do acidente «in the making» de Virilio (o acidente como «a outra face da substância da realidade», como aquilo que «melhora» a própria produção dessa substância, disse o filósofo) tem consequências. Há uma geral inquietação que se pressente a cada momento: tudo dói e faz doer nas faixas que se vão sucedendo. Há zanga e há lamento, ambas estas energias emergindo melancolicamente, como um lume interior que nem as passagens mais agitadas fazem com que alastre. O “modo zen” que se dá a ouvir a meio da viagem é, neste contexto, uma desconcertante ironia. Só que a ironia outra coisa não é senão consciencialização de si: é como se, a meio da gravação destas improvisações não intencionalmente determinadas, por definição formal desse processo, se percebesse o que estava a acontecer. Será por isso que o tema conta mais (ou fotografa mais) do que tem de “errado”, isto é, de acidental, do que todos os restantes.

Quem achar que uma escuta deve conduzir necessariamente ao prazer, é melhor não dedicar o seu tempo a este disco. Convém, no entanto, reter este dado cada vez mais fundamental na presente realidade em hecatombe (genocídio em curso no Médio Oriente, regresso do imperialismo russo, estado latente de guerra mundial, alastramento dos fascismos pela Europa e pelas Américas, desvelamento da natureza autoritária das democracias representativas, crise como modo de funcionamento do neoliberalismo, multiplicação da fobia e do preconceito, etc., etc.): tal como as demais artes, a música é o espelho crítico do quotidiano. Ora, o nosso dia-a-dia é feio, depressivo e perigoso: neste cenário, o que pode a música senão ser de dissensão, de divergência, de combate na lida com as suas próprias entranhas, uma música que mostra a discórdia geral, que tem como nome uma disfuncionalidade da escrita?