Em ensaio assinado por Arnold Berleant com um título curioso, “Ruminations on Music as an Exemplary Art”, deparo-me com uma questão que me vem assombrando ao longo de décadas de actividade de escrita: a inevitabilidade de “explicar” a música nos termos de outra coisa que não ela mesma, por meio de símiles e metáforas. Algo, como de resto vem no texto, a que não escapam os próprios compositores/autores, e logo para começar pelos títulos utilizados. Na única disciplina artística que supostamente não é representativa, há a tentação de representar, ainda que essa “tradução” pela linguagem não possa mais do que ser aproximativa. A música diz sempre mais, e sempre menos, do que a palavra, quantas vezes na exacta proporcionalidade dos seus momentos. Uma apreciação crítica de qualquer peça musical, uma sua descrição, um título apenas, só por analogia equivalem à «ressonância significante» da música, para empregar uma fórmula de Berleant. Por mais debates que se desenvolvam sobre as semelhanças linguísticas entre os dois campos, o certo é que o “significado” da música pertence a uma outra semiótica que não aquela que está implicada nas frases que conduziram o leitor até aqui.
Quer isto dizer que cada recensão discográfica que escrevo, cada artigo sobre um artista a que me dedico, cada reportagem de concerto que publico são a renovada constatação de que a tarefa de escrever sobre música é, apenas e somente, uma tentativa falhada de a apresentar aos outros tal como ela, de facto, é. Se a linguagem é uma ferramenta de comunicação, a forma que temos de transmitir pensamentos e sensações, essa via de ligação ao mesmo tempo que possibilita é também uma impossibilidade: há algo que não podemos transmitir. A grande ironia da prosa de Berleant detecta-se muito particularmente num “lost in translation” que confirma a impotência da escrita e da fala para representar algo que está simultaneamente aquém e além das nossas articulações verbais. Sugere o ensaísta que na música existe algo que a ideia de movimento não cobre, no sentido em que “movimento” é a divisão da temporalidade em grupos regulares de pulsação (métrica), velocidades várias (tempo), durações (valores das notas) e padrões (ritmo), podendo-se igualmente referir movimentos melódicos, harmónicos e texturais, cadências de movimento ou níveis de suspense, mas não mais do que isso. Berleant chama “motion” a esse outro tipo de movimento, menos formal, designando-o como o carácter somático e dinâmico do movimento, uma força, um impulso para diante, uma qualidade processual. Ora, a directa tradução de “motion” para Português é… “movimento”, mas temos aqui um dilema sintático, pois o que se quer apontar vem com o movimento e dele emana, mas distingue-se desse âmbito.
E eis que para representar a música nos pomos a procurar sinónimos que digam mais sobre o que dela não se pode dizer. “Fluxo” não serve, designa outras propriedades. O termo “circulação” é demasiado neutro. “Passagem” também não serve, é vaga. “Mudança” tem outras ilações. A palavra “curso” aplica-se melhor, mas não é isso ainda. Talvez “deslocação”, “deslocamento”? Sim, dá uma noção evolutiva, de «experiência temporal» que «contrasta com a cronologia métrica», e sim, coincide com a definição de que uma «musical motion is elastic». O que posso eu se não dar exemplos musicais concretos e mais elucidativos do que está em causa? Dou dois da safra de 2024 da música criativa portuguesa: “Trizmaris”, do trio de Carlos “Zíngaro”, João Madeira e Sofia Borges, acabado de sair pela ForDArecord, e “Whispers in the Moonlight – In Seven Movements», uma das novidades da Creative Sources, reunindo Ernesto Rodrigues, Guilherme Rodrigues e Nuno Torres. Limito-me a dar a informação necessária para apresentar os dois discos, ou seja, proporciono-vos uma via de acesso ao que realmente importa, a audição, que para todos os efeitos é aquilo a que pode aspirar um crítico ou um jornalista consciente dos limites implicados pela intraduzibilidade da música e frustrado com a imprecisão das metáforas – por mais que a leitura de Derrida o motive.
“Trizmaris” é um portento do expressionismo pelo qual voga uma boa parte da improvisação livre dos nossos dias, e nisso deriva da influência do free jazz. É inevitável verificar as coincidências com o que nos forneceu o Revolutionary Ensemble de Leroy Jenkins, Sirone e Jerome Cooper, no gesto largo, na expressão, na entrega, no drive. Também na incorporação do ruído nas tessituras musicais e numa certa gestão da raiva, do conflito, da dissonância, do lixo sonoro. Nesse aspecto, o “Zíngaro” deste álbum agreste e intenso lembra-nos o violinista na década de 1970: é o “Zíngaro” contestatário, em corte epistemológico com a música clássica da sua formação, um Carlos “Zíngaro” inquieto, disruptivo e argumentativo. Essa carga é a sua “motion”, a sua deslocação pelo movimento da música, e transmite-se para um João Madeira em permanente desconstrução situacional, especialmente percussivo na forma como entende o col legno do contrabaixo, e para uma Sofia Borges que sobrepõe texturas a outras texturas, tecendo com a sua bateria “extendida” redes que fazem mais do que suportar o que globalmente acontece: dão-lhes instabilidade, factor criativo por excelência, e balanço condutor. Resulta uma música que avança, que se transporta, em múltiplas ocasiões que se eleva, transcendendo-se.
“Whispers in the Moonlight” é muito diferente, mas igualmente entusiasmante. Destaca-se, aliás, de anteriores incursões do trio. Está para cá de um Emmanuel Nunes, um Ferneyhough, um Lachenmann: tem indubitáveis conexões e cumplicidades com um certo património da música notada contemporânea, mas transpondo essa sensibilidade para a da música improvisada. Não há corte com a tradição erudita, mas transposição desta segundo uma lógica do instante e da espontaneidade. A integração da violeta e do violoncelo, tocados pelo pai e pelo filho Rodrigues, com o saxofone alto de Nuno Torres adicionando-se a meio, atinge um nível de osmose que faz com que por vezes pareçam ser mais numerosos os intervenientes, assim como parece haver alguma orquestração prévia ou de pós-produção. Não há. A música flui em dois planos, um aéreo, camerístico, clássico por assim dizer, e outro mais ao nível do solo, terroso, orgânico. Em contradição com o passado reducionista destes músicos, há torrentes de elementos a sucederem-se e a enovelarem-se em múltiplos graus de dinâmica e há densidade, aqui ou ali integrando vazios ou transparências. A audição desloca-se com a progressão oferecida, percorre-se o disco como uma viagem, passa da música a impressão de que nos movemos, mas nunca numa só direcção. Esta é uma música de curvas, desvios, viragens, cruzamentos.
Afirma Arnold Berleant que o deslocamento, a “motion” da música, só se verifica com a activação/experienciação da mesma, com a sua performance/execução, com a sua audição efectiva. Uma partitura não é música, ao contrário do que chegaram a pensar os serialistas mais radicais. Assim sendo e por consequência, a prática da improvisação é aquela que nos promete ser a mais cursiva e mais viajante de todas, pois a música é composta no momento em que é tocada, os dois domínios confundindo-se no mesmo. Berleant não tira essa conclusão, mas tiro-a eu – o mais não seja devido a estes dois magníficos discos, que não são símiles de nada, não têm títulos que nos delimitem as interpretações e não têm culpa de quaisquer erros de tradução que façamos ao apreciá-lo com uma gramática e um vocabulário que lhe são estranhos. Existem por si mesmos, o que não posso dizer destas linhas, que só existem porque havia primeiro a música e a música é o que por fim fica e importa.