Cada concerto (espectáculo, exposição, etc.) a que assistamos associa as experienciações directas que temos dele e as que remanescem, indirectas, de outros anteriores, guardados na nossa memória sensorial. Quando fui assistir à instalação videofotográfica de Tânia Moreira David com música de Diogo Alvim à galeria Imago, em Lisboa, tive a forte impressão de que havia duas camadas perceptivas no que estava a sentir e a pensar. Só mais adiante percebi qual era a virtual na minha leitura de “O Futuro do Esquecimento”. Do fundo negro que envolvia tanto o percurso de fotogramas como a projecção do vídeo, com as correspondentes bandas sonoras, emanavam resquícios da actuação de Kim Gordon no Capitólio apenas uns dias antes, 11 de Novembro. Mas por que motivo algo que estava dentro de mim, e só dentro de mim, interferia com o que agora via e ouvia ao lado de outras pessoas que, com certeza, tinham outra ideia do que ali estava? Muito diferentes eram estas imagens das que encontrei no fundo do palco durante o concerto da antiga baixista dos Sonic Youth, e muito diferentes eram as músicas. Ou talvez não: no projecto “The Collective”, o rock indie de Gordon vai buscar elementos ao techno, ao trap/hip-hop, ao industrial. Há um factor electrónico, se bem que desviado da club music. A electrónica de Alvim é outra, experimental, situável algures entre a sound art e a tendência lowercase da música por computador. Havia, de qualquer modo, uma familiaridade de linguagem, e daí talvez o vínculo.
Não é isso, porém, o que explica o sucedido. Encontro o motivo na teatralidade inerente à prestação de Gordon com Sarah Register, Madi Vogt e Camilla Killa. Foi essa dimensão dramática, essa mise en scène, que reencontrei na obra de David e Alvim. Mas não imediatamente: na garagem da Imago a fruição da obra começava pela sua desconstrução, o que era só por si surpreendente. Numa linha recta, conduzindo-nos da direita para a esquerda, estavam dispostos stills de cada uma das situações exploradas videograficamente. Um par de fones estava disponibilizado entre cada duas fotografias. Ouvindo os sons, entendi que estes “colavam” as imagens entre si, dando-lhes uma sequencialidade, mas apenas isso. Esse simples facto sustentava ainda mais o carácter fragmentário desta parte da exposição. Tratava-se de uma linha, sim, mas quebrada. Só o vídeo – apresentado noutro local do espaço, em “quarto escuro” – totalizava esses snapshots encadeados, de uma forma assaz minimalista. Borbulhações, flashes de luz, atravessamentos: o movimento das imagens não ia para além do muito pequeno, do lateral. E a música, essa, discorria, prolongava-se finalmente, já sem agir em loop. Dava um acento dramático, encenador, à ambiguidade visual, muito embora lhe fosse paralela e independente, sem nunca a ilustrar e só se cruzando com o visto em fugazes pontos de contacto.
Uns dias mais tarde (17 de Novembro), na Cigarra, foi sob esta influência que escutei o trio de Luz Prado, Abdul Moimême e Wade Matthews, numa iniciativa da Robalo. Uma semelhante Lilliput esteve – para mim – em acção: Matthews com diminutos e desconjuntados elementos percussivos retirados do banco de sons do seu laptop ou produzidos no momento sobre piezzos, Moimême dispondo ebows sobre as cordas da guitarra ou sobre a enorme chapa que a escondia, como que enchendo os intervalos entre os pontos de batimento ampliados pelas colunas com bordões extremamente subtis, e uma Prado que quase sempre tocou o seu violino com silenciador, distanciada do microfone e optando por produzir texturas. Tudo de uma forma crua e performativa (e estranhamente a mesma performatividade implícita em “O Futuro do Esquecimento”), mas sem “teatro” porque dada ao público na sua mais ínfima elementaridade: não era teatro musical, era um happening, talvez o formato mais próximo da radicalidade da música livremente improvisada. Voltei a ouvir Abdul Moimême no arranque do Creative Sources Fest na Casa do Comum, a 21 de Novembro, desta vez com Carlos Santos e Joana de Sá. Foi uma fruição completamente distinta, e não só porque o guitarrista dispensou a sua parafernália metálica, intervindo directamente sobre o instrumento numa relacionação disruptiva com o que o sintetizador modular de Santos fazia. Se na complementaridade entre os dois executantes havia já intriga, agiram em enquadramento do trabalho desenvolvido por Sá no saxofone alto. Neste caso houve, novamente, teatro, uma cena, um staging. E talvez eu não tivesse essa impressão tão agudamente se não fora a minha anterior ida à Encarnação.
No mesmo período de tempo outros usufrutos concertantes me ficaram encadeados. Coloco no mesmo plano as apresentações do trio de José Lencastre, Jonathan Aardestrup e P.O. Jorgens na série organizada pela Robalo e do trio de Karoline Leblanc, Fred Lonberg-Holm e Paulo Ferreira Lopes no festival da Creative Sources, e isso apesar de o primeiro grupo ter enveredado pelo mais convencional free jazz e o outro ter preferido uma improvisação trans-idiomática, bem patente no modo como o violoncelista americano utilizou o pedal de distorção e as conotações com o rock. A estética era a mesma, a uma enorme distância da colaboração entre Tânia Moreira David e Diogo Alvim ou das formações em que encontrei Abdul Moimême: o expressionismo e, de resto, um expressionismo que não é alheio aos caminhos percorridos por Kim Gordon na sua carreira a solo ou fora dos Sonic Youth – por exemplo, na banda Harry Crews. Neste aspecto, encontrei curiosas equivalências nos desempenhos de Jorgens e Leblanc. O baterista e a pianista partilham a mesma excelência técnica e um distintivo entendimento de como a colocar ao serviço da música, ele construindo sobre o legado fundador, jazzístico, de Baby Dodds, ela sobre compositores pianísticos do século XX como Luciano Berio ou Luigi Nono. Em ambas as circunstâncias, similares dispositivos teatrais, por via de um atribulado sentido de narrativa, com as construções a serem desconstruídas à medida que eram figuradas.
Um outro plano se foi desenhando ao longo das minhas escutas ao vivo nestas últimas semanas, englobando três ocorrências. Uma foi proporcionada pelo quarteto que se apresentou, a 9 de Novembro, no Encontro de Composição Espontânea que teve lugar na Casa Cheia, juntando João Paulo Esteves da Silva, Maria do Mar, José Bruno Parrinha e Alvaro Rosso. Outra surgiu com a associação de João Clemente e Nuno Jesus, membros do colectivo Profound Whatever, a Francisco Cipriano e Vasco Fazendeiro na já aqui mencionada Cigarra, naquela que foi uma nova edição da Lota. A derradeira consistiu na inclusão das Arpyies de Maria do Mar, Catarina Silva e Ana Albino no Creative Sources Fest, em abertura de programa. Neste segmento das minhas percepções o que se anunciou foi a persistência de uma certa sensibilidade lírica, algo devedora ao romantismo (e arriscaria a dizer que igualmente ao impressionismo). Não é frequente que um músico de jazz (Esteves da Silva) toque com improvisadores não-alinhados, e logo por aí se verifica a importância que teve o primeiro destes concertos. Foi uma manifestação de elegância, minúcia e gesto, com o piano, o violino, o saxofone alto e o contrabaixo a interagirem sem qualquer hierarquização. Com fundamentação simultânea no rock e na música erudita, e daí partindo para desfechos inauditos, a proposta protagonizada pela guitarra de Clemente caracterizou-se por um abstraccionismo tão eléctrico quanto pastoral, como se fosse a improvável combinação de algo pensado por Marc Ribot com uma peça para percussão de Xenakis. Por fim, e confirmando que o lirismo pode ser intenso e apaixonado, as três Arpyies encetaram uma subida inclinada desde o detalhe near-silence até ao grito (literal, por meio de vocalizações da violinista), num caldo electroacústico feito de detritos em que a trompa de Silva ecoava como uma ameaça. Teatro ainda, mas nuançado.
As práticas musicais dos nossos dias são de reenvio e de espelho, mas não por si mesmas, “acontecendo” assim sem motivo. As escutas que as enformam essas sim, explicam tal caracterização: reflectem-se umas às outras, estabelecem fios de relação. Toca-se o que se ouve e, na Babel em que vivemos, estamos capacitados a ouvir tudo o que existe e o seu contrário. Kim Gordon e “O Futuro do Esquecimento” desdobraram-se, dentro de mim, no que ouvi de Luz Prado, Abdul Moimême e Wade Matthews, no que fizeram Karoline Leblanc, Fred Lonberg-Holm e Paulo Ferreira Lopes? Sim, mas na medida em que “The Collective” e esse futuro que se imagina sem memória, para o mal ou para o bem, são já o produto de outros encadeamentos em teia ou em cadeia, como nos demonstra a sociologia relacional de Harrison White. Este é um mundo de redes, de redes dentro de redes, e nós fomos apanhados nelas. Diria eu que ainda bem… (Imagem: Tânia Moreira David)