Serpente Imóvel

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01 Cracas

Há caminhos que
Não conduzem a lado algum.
O que podes fazer, então?
Coloca os olhos rente à pedra,
Como se nesse quadro vivo
Estivesse a imensidão
De todo o possível.

02 Materialidade

Será possível encarnar a luz?
Responderias por certo que sim, mas na medida apenas
Em que primeiro absorves a sombra.
Chamam a tal, os filósofos:
Materialidade.

03 Animismo

Animais que dormem, que respiram à luz.
Longos e brancos são os seus cabelos:
Deles já era o mundo antes de chegares.
Acredita na espiritualidade das rochas…
Até no que há de vegetal nelas,
Há de sagrado.

04 Geomorfologia

São como peitos, as dunas?
Como protuberâncias do caminhar?
Convidam-te a subir,
Na sua irresistível compulsão magnética,
Mas aqui ficarás, contemplando
O que não podes ou não deves
Possuir.

05 Silêncio

Quando pegas num galho apetece-te quebrá-lo?
Ouvir aquele estalo que só o gesto permite?
Faz isso, hoje e todos os dias,
Porque o silêncio é um som que perfura os tímpanos.

06 Imanência

Todos os relevos são a constituição
Das formas que os precedem.
Se parecem sair de um corpo,
Mas sem lhe pertencer propriamente,
Pergunta-te se não serão elas o tronco
E o resto apenas
O teu estar.

07 Permanência

O que significa para ti o verbo Estar?
Ir estando, uma permanência?
Não é isso o que te diz uma fotografia,
Com o seu parar-no-tempo.
Quando duas pedras se sentam no teu enquadramento
É como se tivessem acabado de tombar.
Mas foste tu que caíste.

08 Terceiro Olho

Não me digas que tens na Leika
Outro olho além dos teus,
Um olho que não é cego
Ao que está escondido.
Esse aloé-do-natal que alaranja o cinzento
Viste-o tu mesma, repito, tu mesma,
Sem a objectiva.
Ficou foi com a linha do horizonte
Mais direita,
Sabendo tu que é curva.

09 Serpente Imóvel

Pelas linhas irregulares que se desenham nas dunas
Um risco em S altera a superfície.
Confirmas a inverdade das bússolas:
O vento parou, de súbito,
E por um instante,
Um instante que não passa,
És impregnada pela Serpente Imóvel.
Uma terrível serpente-totem,
Um arcaísmo que é Norte e Sul
E Este e Oeste num só plano,
Desfazendo as latitudes do mundo.
Uma latência total, uma ameaça,
Mas que não se concretiza por
Já não ser necessário algo acontecer.
Fica quieta, amiga,
A ameaça está dentro de ti,
É agora o que te governa
E o que governas.

10 Arquétipo

Olhas para diante,
Para fora,
E lembras-te.
Paisagem não há
Que não seja da memória.
Já tinha acontecido,
Aconteceu sempre
Com o teu corpo de sedimentos.

11 Terra

Para onde se dirige o que vem do mar?
Para os teus pés, parece,
Como se o aquém das ondas fosses, inevitavelmente, tu,
Tu feita argila, molde de terra.
O mar, esse, está sempre além, subindo ao céu
Numa escada que não vês.

12 Erótico

São os pêlos das rochas à beira-mar
O que são os humanos nossos?
Isso explicaria o teu desejo
De as abocanhar e esfregar na pele,
Ainda que, na sua providência,
Nada eróticas sejam essas pedras.
Resta, para te justificares, apenas o mistério.

13 Botânica Marítima

São relógios as plantas,
Marcando o tempo na areia.
Não se deslocam de onde estão,
Mas rodam, e rodam,
Deixam-te as marcas do dia.

14 Ansiedade

Erguendo os braços no ar,
Como ramos,
Esperas que o Sol te atinja,
Mas o que tens é
A persistência da Lua.

15 Fonte

Tudo o que irrompe é,
Mas só o sabes pela sombra pintada no solo,
Esse certificado da realidade.
Ainda assim, vê como a água da fonte
Desaparece num fino riacho
Que vai secando com a distância.

16 Falésia

Flor que nasce da rocha,
É rocha.
Rocha que floresce,
É húmus.
Isso dizem os teus olhos
Sem polegares oponentes.

17 Algas

Lambes a pele
E sabe-te a sal.
Também tu vieste
Com as ondas.

18 Transpensamento

Aqui nua, deitada e exposta,
Bafejada pelas brisas do Sol
(Esse astro amarelo que desponta
Entre as nuvens tão nómadas,
Tão breves),
Sabes que o marulhar das ondas
É o teu próprio pensamento.
E embriagas-te com a vida
Que a tua imobilidade de fotossíntese engana:
No areal sinestésico da imaginação
Sentes que o teu corpo se transforma,
Que as ancas e o ventre que tens teus
Já imitam as suaves dunas em redor.
É então que o teu sexo,
Convexo (consexo, dirias),
Se concava,
Como uma flor a recolher-se, expectante,
Num erotismo que só se realiza
Como fêmea.

19 Monocromático

Se não fossem coloridos os seixos
O que farias com esses olhos?
Ficaria monocromático
O que sentes pelas coisas do mundo
E pelas coisas dentro das coisas,
Pelas coisas também que as envolvem,
Como num apertado e quente aconchego,
Esse espaço ocupado onde estão narrativas
E pessoas-possibilidades incluídas.

20 Condição Humana

Quando não voam sobre os cardumes,
Também as aves do mar precisam de um chão.
Este aqui, onde a gravidade te pesa
E só podes caminhar.