Auditório da PLMJ, 26 de Outubro. Relacionamentos em escala – ou em escada. O último concerto dos grupos sorteados do Outonal, transfiguração de um MIA – esse mesmo, o “congresso” dos improvisadores – que por uma vez saiu de Atouguia da Baleia para se realizar no coração de Lisboa, juntou Tiago Varela (realejo virtual), João Pedro Viegas (clarinete baixo), Bruno Gonçalves (guitarra eléctrica) e João Esteves da Silva (piano) numa performance extremamente curiosa devido à disposição relacional dos seus elementos: o setup de Varela (um dispositivo com samples de realejos ligado a um teclado MIDI) ocupava o primeiro plano, devido ao sistema de amplificação, surgindo em segundo o sopro sem microfone de Viegas, em terceiro Gonçalves, que mal se ouvia apesar dos seus rasgados gestualismos (o guitarrista vem tocando cada vez mais em pianíssimo), tendo ficado Esteves da Silva em silêncio, um silêncio cageano, não tocando durante toda a peça. Quatro músicos, um em cada degrau. Um quarteto que foi um solo com ornamentações em duo, mais duas presenças ausentes, ou melhor, duas ausências presentíssimas. Um acaso que podia ter resultado num desastre (pois, a “failure” de Halberstam!), mas acabou por constituir um exemplo de como os desequilíbrios (introduzidos por opções individuais) podem ser criativos. Talvez o concerto mais memorável deste Outonal, por todas as implicações que teve em termos de improvisação colectiva.
O certo é que os nossos ouvidos apreciam diferenças de parâmetros como estas. Pelo menos quando exercitamos uma escuta activa, ao exemplo de uma atenção ao ruído de fundo (o burburinho de um restaurante) de modo a que se misture com os sons (as vozes de quem fala connosco) mais próximos, o que apenas se consegue com intenção. Regra geral, escolhemos uma concentração num parâmetro só, para depois irmos para outro, conforme nos apetece ouvir o fluxo da água num riacho ou uma avenida em hora de ponta. As ocasiões são, claro, distintas, e é nesse impulso que ouvimos agora um disco de música barroca e depois outro de krautrock. Ou que vamos numa noite a um concerto de bordões minimalistas totalmente acústico e na seguinte a um evento punk – a nossa audição alimenta-se tanto do pequeno quanto da desmesura. Por isso fui ao Centro de Arte Moderna ouvir o “Occam Ocean” de Eliane Radigue, a 18 de Outubro, numa interpretação de Carol Robinson e Rhodri Davies que levou a escuta dos presentes a ajustar-se à reduzida dimensão das suas quietas vagas de frequências e harmónicos, e no dia seguinte à apresentação da banda The Parkinsons na SMUP, com os seus maciços riffs de distorção e feedback. Ter estes contrastes na mesma situação (a do quarteto de Varela, Viegas, Gonçalves e Esteves da Silva) é que é raro.
A prestação não foi propriamente recebida pelos intervenientes e pelo público (na maior parte outros improvisadores, como foi sendo sempre hábito no MIA) como algo de plausível. Não era a primeira vez que um pianista se sentava diante do instrumento para não tocar – caso liminar de David Tudor com a célebre “4’33’’” de Cage. Nem foi a primeira vez que o movimento de duas mãos sobre as cordas de uma guitarra não teve tradução sonora perceptível para as filas de trás (John McLaughlin fazia isso, desligando o amplificador). E, no entanto, foi muito evidente o nervosismo dos músicos no palco, que se viravam para o piano volta e meia à espera que este “acontecesse”. Nas cadeiras da plateia, os ouvintes remexiam-se, inquietos. A imobilidade, a não-acção, o silêncio, ou seja, o vazio ou, para ser mais exacto, a impossibilidade de haver um verdadeiro vazio (este gritava), continuam a ser incómodos. No final, João Esteves da Silva justificou-se dizendo aos seus pares que, se entrasse na trama, surgiria como solista, posição que não quis assumir. Só em parte tinha razão: poderia ter escolhido introduzir texturas. Mas pouco importa: o ter decidido não tocar foi imensamente performativo por si mesmo. E numa prática musical que reivindica a liberdade esta opção representou o exercício da sua.
Nos últimos instantes do concerto o piano soou finalmente, mas por iniciativa de Bruno Gonçalves num impulso in extremis. Este sentou-se ao lado de Esteves da Silva, talvez na esperança de que aquele o acompanhasse, mas só conseguiu sublinhar, por comparação, a sua própria e anterior participação liliputiana. Tudo isto foi sucedendo enquanto Tiago Varela nos colocava num mundo, criado pela sua imaginação, em que coexistiam um ambiente de igreja, de música sacra para órgão (pensem na Sonata em Dó Maior K. 336 de Mozart) e outro de rua, profano, com um saltimbanco a rodar a manivela de um realejo com rodas, de chimpanzé ao ombro, dando a ouvir os hits de há 200 anos. Foi desconcertante, belo e já por si improvável. Os acrescentos de clarinete baixo por parte de João Pedro Viegas pareciam emanações desse instrumento intermédio entre o litúrgico e o vagabundo. Estávamos já em território estranho, mas mais estranho ficaria. E mais deliciosamente problematizante.
Calhou ainda que neste Outonal lisboeta do MIA outros relacionamentos de escala se proporcionassem, ainda que não de escada: mais de varanda para pátio. Quando a voz entrava nos grupos em sorteio (exceptuando Maria Perdigão, que dispensou o microfone), devido a um seu excessivo posicionamento nos altifalantes da sala, ficava irremediavelmente à boca de cena (à varanda), com os instrumentistas mais recuados no espaço sónico (no pátio). Se por ocasiões tal resultou interessante, noutras impediu que se ouvisse mais claramente o que os outros músicos faziam, além de que estabeleceu uma hierarquia entre solista e acompanhamento, um “não, não” no domínio da música improvisada. Patrícia Domingues apresentou-se com Maria do Mar (violino), Noel Taylor (clarinete) e Ana Albino (guitarra eléctrica) e Maria Radich com Fernando Simões (trombone), Paulo Galão (clarinete baixo) e Miguel Mira (violoncelo), em ambas as prestações estabelecendo uma bidimensionalidade tão errada quanto intrigante, inclusive pelo facto de terem tido bons desempenhos. E eis que nesta escala outra escala se integrou, no caso de Domingues: em parte do tempo, fez “cantar” o seu corpo, apenas o seu corpo, numa dança que já não era condutora (o privilégio da amplificação), mas ouvinte. Ora, a dança também cria música, uma música para os olhos. (foto: José Félix da Costa)