Foi a sua estreia no MIA – Encontro de Música Improvisada de Atouguia da Baleia, que teve mais uma sessão nos passados dias 21 e 22 de Junho. Claude Colpaert veio de França e trouxe consigo não o gamelão (mais exactamente, o gangsa gantung, um metalofone do Bali), seu instrumento principal, mas um par de trombones como nunca se tinham visto na vila plantada ao cimo de Peniche onde agora a Zpoluras vai organizando uns mini-MIAs ao longo do ano: era tudo demasiado, tudo esfuziante; agora ganhou-se uma dimensão mais sustentável e convivencial. Trombones, disse: um era um alto construído em PVC, de cor vermelha; o outro um soprano, pouco maior do que um trompete de bolso. Tocou-os em simultâneo e à vez numa abordagem que reconciliou o incendiário e o pensado – encaixou na tarde de sábado no tutti frutti de sopros que conjugou os clarinetes soprano de Noel Taylor e baixo de José Pedro Viegas, os saxofones tenor de José Lencastre e soprano de Chagas, o trombone de Fernando Simões, o trompete de Luís Figueiredo.
Claude foi para a Atouguia à boleia da minha boleia, partindo de Lisboa. Ele que também canta (no duo Vox Copuli, com a sua vox a ser processada em tempo real por Fred Loisel), mal conseguia falar. Tinha sido operado às cordas vocais umas semanas antes. Quando dei pelo nome dele no alinhamento do encontro, rejubilei. Se Claude tem desenvolvido a sua actividade nas periferias da música criativa europeia, não sendo propriamente uma “estrela”, é, no entanto, uma das suas mais intrigantes e desconcertantes personagens. Aliás, nunca se sabe muito bem que instrumentos vai tocar. No seu arsenal constam também o saxofone sopranino, o clarinete, o dan bao, o kigonki, o carrilhão koshi, o harmónio indiano, várias flautas balinesas. Era de esperar que refrescasse o painel de participações (no essencial o mesmo de sessão para sessão) do MIA, e foi o que aconteceu. Conhecia já pessoalmente os dois Carlos portugueses mais conhecidos pelo mundo (“Zíngaro” e Barretto), sabia que por cá aconteciam coisas interessantes nos domínios da improvisação livre e o apelo do Oeste chamou-o. Ora ainda bem.
Mas verdade se diga que também a “prata da casa” nos deu revigorantes banhos. Tiago Varela era um repetente no MIA, mas neste de Junho destacou-se de modo muito especial. Levou duas das suas melódicas, uma caixa com uns quantos pedais de efeitos e um amplificador retro, set up que lhe permitiu construir paisagismos de desenvolvimentos lentos sobre loops de si mesmo. As melódicas iam-se transfigurando: parecia que ouvíamos uma harmónica, uma flauta, um organeto medieval, uma sanfona, um acordeão, um órgão de tubos. No primeiro concerto em que interveio, a 21, teve de se confrontar com o bullying sonoro do australiano Julian Percy, que estava munido de uma grade com cordas de contrabaixo e de um estrado com objectos de metal, ambos armados com micros de contacto. Se o contraste entre estes elementos de noise disruptivo e os harmónicos pairantes de Varela era curioso, o músico lisboeta acabou por ficar apagado. Vingou-se no dia a seguir, articulando-se no salão do Conde Távora com a guitarra de Ana Albino num momento de (desculpem o cliché, mas não há melhores palavras) pura poesia.
Uma Ana Albino que acabaria por ser o caso maior deste MIA. Ali aterrou, pela primeiríssima vez, e sem perceber ao que ia, como membro do projecto Arpyies, formado com ela e com a trompista Catarina Silva por Maria do Mar, uma habitué do evento que também a cada ida apresenta diferentes facetas. Foi o grupo mais ovacionado da noite de 21 de Junho, numa Igreja de S. José cujas características acústicas foram exploradas a partir de uma partitura gráfica constituída por cartões escolhidos pelos assistentes, na qualidade de “co-compositores” – a prestação balançou entre extremos, de um lado uma intensidade selvagem que justificou o nome escolhido para o grupo e do outro uma delicadeza feita de espaços e elementos liliputianos. A acompanhante de Teresa Salgueiro em outras lides musicais foi surpreendendo os seus pares de todas as vezes que era chamada a palco e apresentava novos materiais. E fê-lo sem pedaleira durante os sorteios, num jogo limpo e dedilhado de guitarra eléctrica que ou pontuava ou sugeria.
Intervenções assinaláveis tiveram outros participantes: Joana Guerra no violoncelo, Raquel Silva no saxofone barítono, Pedro Marques na marimba, Luísa Gonçalves no piano. Até Julian Percy se redimiu dos seus excessos anteriores, aqueles que terminaram com o derrube da sua parafernália em caos decibélico: suportou com um particular sentido de elegância, arco sobre cordas, um dos melhores solos do fim-de-semana, subscrito por Paulo Chagas. As diversas formações ad-hoc que surgiam funcionaram muito bem, e tanto assim que quem ficava de fora numa determinada escolha de papéis invejava a companhia dos contemplados. Manuel Guimarães, que se apresentou na dupla função de pianista e guitarrista, não resistiu mesmo a dizer uma piada: «Isto está tudo viciado.»
Não estava, mas se estivesse que magníficas trapaças teriam sido o trio de Joana Guerra, Aleksandar Caric Zar e Maria Radich, o duo de Maria do Mar e João Pedro Viegas, o quarteto de Catarina Silva, José Lencastre, Luís Figueiredo e Manuel Guimarães ou os dois combos que interpretaram, de maneiras totalmente distintas, o tema “So What” de Miles Davis. Discreto, mas delicioso de ouvir, esteve Dean Roberts, sempre com poucas notas guitarrísticas e quase nenhuns acordes. Já a crescer, e crescendo mais e mais consoante as horas avançavam, esteve uma cantora local, Maria Perdigão. Se há alguém que o MIA deu ao planeta, é esta atouguiense de gema. (Foto de José Félix da Costa)