Nebbia / Borges, Guerra / Tembe: o degelo pode esperar

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De um lado (Camila Nebbia e Sofia Borges) tínhamos encadeamentos frásicos com uma lógica desenvolvimentista irrepreensível e ultrafocada; do outro (Joana Guerra e Yaw Tembe) uma sobreposição/contraposição por camadas de texturas sónicas. O contexto era o do Picadeiro Jazz, um ciclo de concertos em solo, duo, trio e quarteto resultante de uma parceria entre o S. Luiz e a editora discográfica Robalo, com programação do baterista João Lopes Pereira. Fins de tarde ao ar livre, e com vento fresco, nas traseiras (Largo do Picadeiro) do teatro lisboeta. Difícil quando o mês de Junho já não é o mesmo neste tempo de alterações climáticas, por mais que queiramos instituir alguma normalidade. A música, essa, não se deixou afectar: do dia 1 ao 15 houve também Bode Wilson e Garfo, houve Borage, Bill McHenry com Michael Formanek e Jeff Williams e ainda o “uniteto” de André Fernandes, mas foram estes dois que me convenceram a vestir uma camisola com o Verão quase a chegar.

Nada de comum tinham os emparelhamentos de Nebbia e Borges e de Guerra e Tembe: os modos de construção musical não podiam ser mais distintos e as estéticas aplicadas também. O mais desalinhado foi o primeiro que se apresentou: se a associação da violoncelista e do trompetista inclui aspectos das tendências ambiental, experimental e livremente improvisada da presente música urbana, em nenhum desses lugares se fixou, preferindo uma deriva à distância. O timbre era o factor primeiro e a dupla procurou alargar a sua paleta de sons. Joana Guerra cantou, tocou harmónica e utilizou um teclado para além do seu instrumento habitual. Yaw Tembe desdobrou-se entre o trompete, a flauta, um controlador electrónico de sopro, percussão vária, a voz e os manípulos e botões que tinha diante de si. Havia uma trilha de fundo, com chilreios de pássaros. Um melro numa árvore próxima acompanhou entusiasticamente.

Delays, loops e processamentos eram uma constante, mas estavam ao serviço de um pastoralismo muito intencionado. A música electroacústica dos nossos dias tornou-se bucólica, ecológica e pós-humanista (leia-se Donna Haraway e Francesca Ferrando, por exemplo) e esta actuação foi mais um indício dessa recente evolução. As tramas urdiam-se a partir de elementos da natureza e eram a esta devolvidos. Estabeleciam-se conexões e interrelacionalidades entre farrapos de som, e não necessariamente para que casassem bem ou tivessem um sentido musicológico e racionalista. O que estava a ser inventado era uma floresta tropical, com as suas entropias inerentes. Só no final do concerto chegaram duas situações de harmonia, como se esta tivesse sido escavada na madeira, mas fosse nos momentos mais abstractos como nos tonais e melódicos o que ficou em evidência foi uma persistente opção pela vulnerabilidade, pela delicadeza, pela nuance e pelo detalhe – tudo aquilo que não cabe num entendimento masculinista do jazz.

Camila Nebbia e Sofia Borges colocaram-se noutro ponto: o das heranças do free jazz num mais além, num “pós”, em que os módulos associativos da escrita composicional e da improvisação foram retomados para chegar a outro lado. Ou seja, se podemos colocar este projecto na sequência dos duos de saxofone e bateria, o vínculo com essa específica tradição é já ténue. A argentina e a portuguesa radicada em Berlim desconstroem essa linguagem no feminino: a energia, a disrupção e a agressividade continuam presentes, mas são reassignificadas e despatriarcalizadas. A prestação musical foi intensa, mas a forma como o pequeno (os pormenores) emergia do grande (o overblowing do sax, os cachos de sons percussivos) tornava a audição num outro tipo de experiência.

Não necessariamente a do espectador que, vá-se lá saber porquê, tinha um espasmo físico a cada trejeito do tenor de Nebbia, como se o som o afectasse no âmago mesmo da sua estrutura interior. A emocionalidade do que ouvíamos nada tinha de brutalista, era sim a tradução da Filosofia do Afecto de um Frederic Lordon, um Vladimir Safatle ou uma Maribel M. Sobreira, talvez a mais interessante, urgente e necessária na actualidade. E terá sido por afecto que o público demorou a debandar depois do fim. Por ali se foi ficando, à conversa, apesar do frio. O degelo dos polos podia esperar.