Reinhold Friedl meets ZARMensemble: a arte de bem improvisar

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Um delicado novelo de som estava em elaboração por meio das preparações do piano de Reinhold Friedl, algo entre o percussivo, devido aos objectos estrategicamente colocados na armação interior do instrumento, e o electroacústico, pela deslocação de dois ebows de guitarra nas cordas. A dado momento, Carlos “Zíngaro” introduz uma única nota em pizzicato com o seu violino. Só aquele elemento, na sua simplicidade e na sua nudez, fez com que tudo se elevasse para outro plano. Foi como que uma verticalização de parâmetros, inesperada e surpreendente. Noutra altura, aos dois violinos (o segundo a cargo de David Alves) e ao violoncelo (Ulrich Mitzlaff) do ZARMensemble, com Friedl a teclar por baixo numa trama horizontal, acrescenta-se o contrabaixo arcado de Alvaro Rosso: de súbito também, a música ganha recuo e profundidade. Torna-se tridimensional, ou assim parece.

Foram momentos destes que, no passado dia 8 de Junho, na lisboeta Casa do Comum, nos ofertou o encontro do pianista alemão que conhecemos do ensemble Zeitkratzer, e de associações com Elliott Sharp, Lee Ranaldo, Keiji Haino, Merzbow, Lou Reed, Phil Niblock, Terre Thaemlitz ou Laurie Anderson, com o quarteto de cordas que gravou “Duot With Strings” ao lado do duo de Albert Cirera e Ramón Prats. Dedica-se este a uma música de câmara integralmente improvisada que configura de modo brilhante as rearrumações estéticas próprias deste início do século XXI – ressignifica as premissas camerísticas e tem um entendimento composicional da improvisação. “Zíngaro” é um infalível lançador de motivos e Rosso tem sempre uma intervenção estruturante, com um essencial Mitzlaff na manutenção do corpo e da fisicalidade de qualquer situação e Alves buscando posicionamentos de contraponto em relação ao seu pai, algo que não é fácil tendo em conta que Carlos “Zíngaro” é uma das figuras internacionais mais relevantes do violino criativo.

Tarde de chuva miúda, mas pesada, cada gota contendo areias do Saara trazidas pelo vento, numa Lisboa que as alterações climáticas tornaram tropical. A música que se ouviu tinha tudo que ver com esta nova realidade: era outra coisa de algo que tinha uma predefinição estabelecida. O que quer dizer que este concerto nos fazia lidar com dois parâmetros: um conhecido, herdado, “clássico”, outro de imprevisibilidade, descoberta e pesquisa. As dinâmicas construídas faziam com que este agisse sobre o outro, numa constante articulação de termos que ora funcionava por conflito e ruptura, ora por reconciliação, aceitação e apaziguamento. Estava em cena uma música com história, sim, mas esta ia sendo desconstruída para resultar numa diferencialidade futurística – e digo “futurística” porque colocada num “mais além”. Não era, de todo, uma retrotopia, e sim uma reinvenção.

Sem as hierarquias que caracterizavam o passado da música de arte: o pianista convidado, Reinhold Friedl, não era o solista e o quarteto de cordas não se limitava a actuar como um mero interlocutor ou acompanhante. Estava claro que eram dois igualmente os eixos, piano + quarteto de cordas, com este a agir como uma unidade, mas o relacionamento dos músicos fazia-se a um nível interindividual, através de cortes transversais operados na disposição desses módulos. E o que mais impressionou foi verificar como o ZARMensemble, sendo constituído por cordofones com pouca projecção sonora (não estavam amplificados), se tornava numa máquina tonitruante. A energia e a força expressiva do grupo eram espantosas, como aconteceu, em particular, no microtema proposto por “Zíngaro” com staccati e um desenvolvimento colectivo em formato de fuga. Fosse com guitarras e bateria e soaria como o punk hardcore.

A atitude era radical e essa radicalidade sedimentava-se nas próprias urdiduras. Quase podemos comparar as manipulações de morfemas a que assistíamos com os radicais da linguística. Um radical é uma palavra fixa que serve de base para todas as palavras da mesma família: se na música instrumental não há palavras, há figuras que se lhe equivalem, e os jogos que se estabeleciam sugeriam uma conexão de cognatos (termos de origens comuns com o mesmo significado) bem definidos com “falsos amigos” (falsos cognatos, termos com sentidos diversos), de tal modo se multiplicavam e mutavam, até à diluição, os materiais utilizados. Um concertaço e uma masterclass de como bem improvisar.