Desmentira: o punk afro em que (quase) ninguém reparou

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Que o punk português seja historicamente branco não surpreende ninguém. A afrodescendência nunca por cá se interessou por formatos musicais que não fossem os seus próprios, trazidos de Cabo Verde, Angola ou Moçambique, e mesmo que as ligações caribenhas do género musical nascido no Reino Unido constituam um facto, essa é uma referência distante, coisa que pouco tem que ver com quem está cá. Há, no entanto, uma excepção, e desta pouco ou nada se fala: refiro-me ao projecto Desmentira, de Hélder Oliveira, cantautor e multi-instrumentista que vive entre a Parede e Londres, cidade do mundo que o convocou não por ser músico, mas porque é igualmente um génio da programação informática.

Em Portugal, as canções de nada lhe valeriam para manter uma vida e verdade se diga que os códigos também não. Em Londres, o punk do Hélder não teria qualquer hipótese. As letras de Desmentira são autobiográficas e estão intrinsecamente ligadas ao ecossistema humano da Parede: falam das suas raízes sociais e culturais. Na capital britânica ninguém o entenderia, até porque insiste em cantar em Português. Não é que muitos mais o compreendam por aqui, a não ser os osgas, habitantes da vila do concelho de Cascais que conta com três praias, pequenas, uma delas agora quase desaparecida, a Bafureira, mas icónicas. Aliás, Desmentira não tem discografia nem faz concertos. A única forma de o conhecer é através do Youtube, onde estão colocados vários vídeos, na maior parte de sua autoria. Do It Yourself.

“Perdi Tudo na Crypto” é um hino à inocência num sistema económico que nada tem de inocente. Aconteceu mesmo: Hélder Oliveira acreditou na última febre do capitalismo, a das bitcoins, e perdeu o dinheiro que tinha juntado. Parecendo pertencer a um velho jogo da Nintendo, as figuras e as animações que vemos no ecrã são dele e de Jesús Vásquez. Os efeitos visuais e a edição estiveram a seu cargo; tudo feito entre a sua casa na Madorna e o estúdio paredense Red Bunker. Já a realização vídeo e os vocais de “Peixodamus” deixou-os, respectivamente, a Bernardo Bobone e Raul Álvares. As imagens foram colhidas ali perto, na Quinta Real de Caxias, resquício do passado quando, afinal, se fala do futuro. Vemos Hélder na guitarra, com o seu cabelo afro. «Que estranho dom que tenho / Em que olho e sinto / Sem sequer tentar», ouvimos.

As “Viagens Para Poder Ser” fazem-se entre a Parede e o Cais do Sodré – estamos no comboio, Alexandre Lopes canta que «ninguém se deve meter no caminho entre um homem e o seu ganha-pão» e Hélder, a seu lado, abana a cabeça, lamentando que haja quem o faça. Pelo caminho, paramos em Singapura e em Londres. Faz sentido, quando se anda pelo mundo entre estações ferroviárias. “Traz a Conta Pá!” acontece num restaurante do Bairro Alentejano, A Taberna do Henrique, e no septuagenário Limo Verde. A mensagem é dura, mas sugerindo que temos de ter orgulho em tudo o que fazemos: «Se o teu trabalho é servir mesas / Vê se aceitas a verdade.» Pois, o Hélder chegou a trabalhar na recolha do lixo.

O tema “O Charco” contém um excelente solo de guitarra – no velho punk não havia solos, ninguém tocava mais do que dois ou três acordes. Desmentira foi de armas e bagagens (instrumentos, figurantes) para a abandonada Bateria da Parede e tudo se passa entre canhões de artilharia e, sim, poças de água. Novidade: a canção integra um didjeridu, tocado pelo Puto André. Na terra, toda a gente sabe quem é. Encontro outras caras bem conhecidas, como o Biqueira – pseudónimo ganho na antiga Escola dos Macacos – e o Jeff. Constatação absoluta, tanto em Moçambique, onde Hélder nasceu, como nestas redondezas de Lisboa: «A vida é uma cobra.»

Em “Supaidafisshu” conta-se uma ficção: e se na praia da Parede houvesse peixes-aranha? Volta Raul Álvares aos vocais, mas desta vez as letras também são dele. No fundo vemos o antigo Sargo, hoje Adamastor, ex-libris de qualquer osga que se preze. Auauauauauau. A ironia é que algumas sequências foram gravadas na Platja de Llevant, Espanha. O mar da Parede ganha aos toldos azuis de Benidorm.

O motivo de “Cota Barata, Abra-me Essa Porta” é «procurar um sítio para ir» quando se faz tarde na noite. Onde na Parede, se está tudo fechado? Ora, no bar do Clube Nacional de Ginástica. A porta está fechada, é preciso bater até o sempre carrancudo senhor Barata abrir. «É uma da manhã e eu não vou desistir» surge como o refrão típico de uma realidade suburbana. Ainda que se trate de um subúrbio com características de colónia balnear. Suburbano é também “Pato, o Homem da Mala”, que evoca uma personagem da zona – andava pela Madorna, pelo Murtal, pelo Penedo, lá para os cimos da Parede – na década de 1990, daquelas de lenda. As marionetas e a animação são do grego Lampros Kordolaimis, a storyline do Hélder. É quase uma história policial. O homem deslocava-se invariavelmente com uma mala e o seu conteúdo constituía um mistério e levantava cobiça. A intriga acaba num assassínio e em dinheiro espalhado pelo chão. Brrrr.

O grande spot da Parede é, claro, a SMUP – Sociedade Musical União Paredense, e são os seus exterior e interiores que vemos nos desenhos animados assinados por Edy Leonardo em “O Spot Já Espigou”. O que está em causa aqui parece ser o episódio racista de que Hélder Oliveira foi vítima por parte de um elemento da direcção daquele espaço que, entretanto (só podia!), foi afastado. «É para a frente / É para atrás / A malta entra no sítio / Sempre na paz», canta Desmentira. Como é possível que esta canção não seja um hit? Pois, já sabem qual é a resposta…

Tudo isto está em https://www.youtube.com/@desmentira. Espreitem, que vale mesmo a pena. «Liberdade, espontaneidade, criatividade e muito improviso. Foi com este mote e retirando inspiração do punk rock que nasceu o projecto Desmentira. O objectivo foi puxar pelo pessoal da Parede e arredores, enfiá-los num estúdio e dar-lhes oportunidade de contarem uma história musical: sem medos, sem complexos, sem perda de tempo, 1! 2! 3! 4!», lemos no canal. Neste momento conta com 599 subscritores e 14 073 visualizações. Podia ser muito mais.