Relata-nos a mitologia grega que a morte matada de Medusa fez com que no lugar desta nascessem três irmãs górgonas. Na verdade, uma mais duas, assim se distinguindo porque um par delas não sobrevive. Também em “Solo – Sete Peças para Violoncelo, Electrónica, Feedback de Áudio e Gongo Ressonante” (Osso, 2024), a mais recente derivação do projecto “Medusa” de Ricardo Jacinto, é a reformulação musical desta tríade simbólica (de certo modo equivalente à Santíssima Trindade católica) que nunca o chega a ser, existindo apenas em potência ou como (im)possibilidade. É este (não-)possível que Jacinto encena. O espaço-tempo delineado pelo violoncelista-compositor-improvisador é habitado por três corpos/figuras, sendo que só um tem uma presença concreta: o violoncelo, cujas entranhas são microfonadas em três pontos distintos por um sistema electrónico que integra pedais de processamento, computador e altifalantes.
Há, pois, uma transposição “científica”, equivalendo os microfones a microscópios que têm por princípio não só revelar o pequeno como permitir a manipulação (experienciação) deste. As outras duas figuras deste “esquema corporal” (Merleau-Ponty) são o humano, o do músico executante, e o corpo da arquitectura, o edifício, com o qual o violoncelo interage. O situacionismo de “Solo” está descentrado do factor humano, fixando o seu eixo na tecnologia (o violoncelo e os dispositivos a que este instrumento-prótese está ligado) e tendo tecnologia também (a arquitectónica) como âmbito maior, na forma de uma envolvência activa e determinante. A intervenção do corpo humano é difusa, agindo quase como um fantasma que só se pressente no gesto, e difusa é a influência do espaço construído, não sendo fácil distinguir o quanto do que ouvimos é acção ou reacção aos seus agenciamentos. É este o twist introduzido por Ricardo Jacinto: o que acontece quando os nossos aparatos extensivos se sobrepõem à nossa fisicalidade?
A situação criada pelo artista levanta velhíssimas questões da filosofia, como o dentro e o fora, o interior e o exterior, toda uma série de dualismos que foram atravessando a história do pensamento em áreas que vão da epistemologia à ética. É muito curioso verificar, de resto, a tendência que fomos tendo de reduzir a complexidade das coisas a binarismos (por exemplo: cultura versus natureza) e a dialécticas que traduzem dois termos num só, para tal utilizando as fórmulas de três propostas por Hegel: tese, antítese e síntese, as três irmãs geradas pelo desmembramento de Medusa. O interiorismo (a vida psicológica) e o exteriorismo (o mundo material) impuseram-se como tendências opostas e até exclusivas, uma refutando a outra. À maneira do Merleau-Ponty de “Fenomenologia da Percepção”, Jacinto procura dissolvê-las colocando-as em relação: o violoncelo figura-se no já referido esquema corporal (um fundo que é já uma figura, ainda que não a entendamos como tal) de dentro para fora, exterioriza-se no espaço definido pela arquitectura. Seguindo esta lógica de projecção, seria de esperar que cada dentro fosse um fora, infinitamente reproduzível, mas a própria arquitectura, enquanto disciplina racionalizadora do espaço, vem-nos dizer que este, quando vazio, não existe como espaço.
Ou seja, a arquitectura é a fronteira externa de “Solo” e de toda a série “Medusa”, fazendo com que a sua influência surja de fora para dentro. Entre as forças de exteriorização e interiorização a que sonicamente assistimos forma-se um espaço-tempo intermédio, um in-between. Um espaço e um tempo que não são “públicos” nem “privados”, os dois eixos com que se organiza a ocupacionalidade da arquitectura. E como este “entre” é uma faixa feita de ambiguidades, em que tudo é impreciso e incerto, porque concomitantemente fechado e aberto, temos (não tendo) uma quarta figura neste plano que se faz sentir precisamente por não estar lá (não a ouvimos no LP), existindo apenas virtualmente: a audiência. É o que se verifica quando a música tocada ao vivo é registada em suporte, para audições em diferido. O que constitui um enorme campo de interrogações, pois o sujeito de qualquer percepção somos nós mesmos, “público”, uma entidade de caracterização mutante. E tanto assim que, em muitos casos, grande parte da audiência de um álbum gravado em concerto não é a mesma que fisicamente, corporalmente, assistiu ao mesmo.
Significa isto que Ricardo Jacinto colocou em cena o dilema que Merleau-Ponty não conseguiu resolver na sua tentativa teórica de ultrapassagem das separações entre interior e exterior. Havendo um movimento de continuidade entre ambas as categorias, o que só por si retira os fundamentos às correntes idealista e empirista da filosofia, verificamos que os entrelaçamentos entre o eu e o mundo não estão propriamente em equilíbrio. Há uma prevalência do eu, ou seja, do dentro, do interior, ainda que na mise-en-scène de “Solo” esse eu seja um corpo transparente e colocado ao lado. Merleau-Ponty não deixa de o reconhecer quando afirma que imbuímos o mundo com os nossos valores e entendimentos, ou dizendo de outro modo, que subjectivamos o mundo, que apenas está ao nosso alcance formular versões individuais do que é a realidade. Mas o filósofo nunca chega a retirar as devidas ilações: no contínuo dentro-fora estamos sempre mais dentro do que fora.
Quando no início do processo “Medusa” ainda se utilizava o subtítulo “Violoncelo Explodido”, o que importava no conceito não era a explosão em si mesma, mas a operacionalidade explosiva – é a tecnologia que proporciona ao humano a capacidade de ir mais além, de sair do seu corpo para atravessar outros corpos. Só que o poder tecnológico tem limites e nesta criação conta-se à partida que esse condicionalismo se confirme. A explosão é contida e há um retorno que poderia conduzir à implosão, mas também nunca se aproxima desse desfecho. A escala espaciotemporal da arquitectura é uma campânula de contenção.
O que este “Solo” tem de fascinante é o facto de espelhar a disfuncionalidade das ligações do interior humano com o mundo exterior como uma normalidade. Regra geral, a arte não trata do que é normal e vulgar; quando o faz, trata-se de decoração ou entretenimento. Será, decerto, pelo facto de ser a mais abstracta de todas as artes, devido à circunstância de não representar, que a música tem a propriedade de tornar numa práxis, numa performance, algo que pertence ao domínio da abstracção, as ideias. Quando Merleau-Ponty disserta sobre a incorporação do mundo com todos os seus seres e objectos ou como o humano é já o mundo, só neste podendo conhecer-se a si mesmo, observamo-lo a percorrer duas direcções opostas. Nos pontos coincidentes de passagem de tais percursos, geram-se paradoxos que não são mais do que a nossa primordial contradição.
Através de Merleau-Ponty, Jacinto coloca a claro uma falha sistémica e original que não pode ser resolvida: tanto o que está fora de nós como o que está dentro aparece-nos como uma geral improbabilidade, o mais não seja porque um âmbito relativiza ou coloca em causa o potencial do outro. E, no entanto, co-existem, se bem que não verdadeiramente a meio, nesse comprimento entre o que vai e o que vem, artificial porque tecnológico. O lugar possível do humano-no-mundo e do mundo que é introjectado pela mente é lateral e porque lateral está na sombra, retirado. Temos de procurá-lo nas imediações do que está “entre”, do que não é interior nem exterior ou que é as duas coisas.
E não, a realidade não é o Grande Espelho do ser e muito menos a Janela com que este mira a distância e a distância nos devolve o olhar (o ouvido). Para os efeitos armados por Ricardo Jacinto, a realidade alicerça-se como a prisão que nos protege do vácuo. A arquitectura de interiores é uma disciplina autónoma da maiúscula Arquitectura, esta ocupando-se sobretudo dos exteriores: é ela que escutamos em “Solo” e escutámos em todos os “Medusa”. Em dois parâmetros contíguos, a arquitectura do espaço físico em que o som se propaga e a arquitectura do espaço físico contido no corpo do violoncelo, de onde parte o som. Mas vejam onde é disposto o factor site-specific (a gravação foi realizada no Auditório CCOP do Porto a 1 de Abril de 2022) deste sistema: na emissão e sua imediata reprodução, isto é, no conteúdo do espaço e não no espaço invólucro. Não podia ser de outro modo: o conteúdo faz o espaço, justifica-o e funcionaliza-o. Em “Solo”, a arquitectura impõe-se, antes do mais, como cenografia. E para todos os efeitos, ouvir este vinil é um pouco como observar uma casa de bonecas.