Primeiro disco em nome próprio de Francisco Andrade, “Linhas e Formas” (Melro Preto) constitui para estes ouvidos não só uma das melhores ofertas da produção discográfica de 2024, como também uma das mais surpreendentes, pelo desalinho com as tendências geralmente perseguidas. De um álbum de jazz se trata, com todas as implicações que tal supõe em termos de identificação de estilo, mas a forma como esse mesmo jazz é entendido e tocado faz toda a diferença. Anuncia-se uma adesão para a desestabilizar, uma e outra vez, e não com o propósito de nos dar a entender que “depois daquilo” só pode vir “isto”, que a partir do passado se forja um futuro, um discurso tão comum quanto falso.
Mas já lá vamos. O próprio mote desta edição («a luz que vai à frente é que alumia») leva-nos a recuar um pouco. Comecemos, então, este texto pela identificação de estilo, isto é, pelo ponto de partida: o músico madeirense inscreve-se na linhagem de um jazz de cunho português (europeu, mas desta Europa que somos), e não raro ao longo dos temas surgem âncoras que nos remetem para dois marcos definitórios da evolução deste, o “Malpertuis” de Rão Kyao (1976) e “Cores e Aromas” do quarteto de António Pinho Vargas (1985). É nesse espaço que se insere e é nesse espaço que faz a diferença relativamente a tudo o mais que foi acontecendo em consequência (directa, indirecta ou em desacordo) desses ícones inaugurais. Andrade não cita: segue uma abordagem ao “jeito de” que nos situa numa rota pré-existente para depois dela se ir desviando. Não sei até que ponto há intencionalidade, pois esta caracterização poderá dever-se mais a factores genéticos do que propriamente a determinações programáticas. De um modo ou de outro, é evidente a preocupação pela forma. Se pudéssemos esperar dele um disco de saxofonista, pois foi enquanto tal que vingou o seu nome, o que aqui temos é, essencialmente, uma obra de compositor. Francisco Andrade concebeu uma forma e insere nela as suas virtudes de execução.
E tanto assim é que aplica essa lógica também ao papel desempenhado pelo pianista, o catalão Javier Galiana. Se este, a uma primeira e superficial audição, nos parece colocar-se à parte no seio do grupo (o trio nuclear com o baterista João Lencastre, o quarteto em que se acrescenta o contrabaixo de Ricardo Dias e aquele em que aparece Alexandre Andrade no trompete), o estabelecimento de um padrão que se repete faixa a faixa leva-nos a concluir que este é um dispositivo composicional, que não apenas performativo. Galiana não surge como um elemento da secção rítmica ou como o eixo harmónico entre o (ou os) instrumento(s) melódico(s) e o (ou os) rítmico(s): está fora, ao lado, com funções disruptivas ou de oposição que vão muito além do contraponto ou do contratempo. Tem como finalidade desconstruir, em simultâneo, o que os outros instrumentistas vão construindo, o que é só por si uma singularidade. Ora, procedimentos como este só são verdadeiramente eficazes quando sustentados por uma fórmula. Esta vai-se revelando no desenho geral até ganhar relevância face aos materiais que lhe dão conteúdo.
Utilizar o termo “fórmula” poderá ser enganoso, mas já o é o título escolhido para o disco. “Linhas e Formas” pode levar-nos a presumir que estamos diante de um conjunto de exercícios de transposição plástica. Mas não, a analogia não resulta assim tão óbvia, pois outras particularidades não necessariamente visuais são proporcionadas pela escuta, como os jogos de intensidade, densidade, dinâmica e volume que se vão sucedendo. Se há, pelo menos, algo de design nas disposições de Andrade, e até na titulação situacional dos temas, sempre com uma única palavra (por exemplo, “Armação”, “Água”, “Sumauma”, “Caixinha”), não são exercícios que encontramos e mesmo a equivalência musical com os títulos nada tem de representativo. Em termos alusivos, aqueles que dizem respeito à história do jazz constituem igualmente um tropeção no expectável: depois de um “Sanrénzu” em que Francisco Andrade parece render-se à influência de John Coltrane, temos um “Índia” que contradiz o antes exposto, uma pequena peça atmosférica que se recusa a dar vazão a esse seu lado com uma entrada em sintetizador e um fraseio saxofonístico que nos espelha a sonoridade de José Nogueira com Pinho Vargas, esticando-a na direcção de Garbarek num cruzamento de ligações.
O desvio justifica a estrada principal. Sem percorrer esta não há curva que se possa fazer. A luz que vai à frente é, conta-nos este álbum, a que se acendeu lá mais para trás. No universo criado por “Linhas e Formas” o que está adiante é, de alguma maneira, o que alguém imaginou antes. Foi então que se alumiou todo um campo de possibilidades. Ou seja, neste entendimento passado e futuro confundem-se, e não simplesmente porque o futuro tem as suas raízes no passado. O passado já era uma questão de futuro. Neste enquadramento, o piano de Galiana é, com a sua sistemática fuga aos parâmetros delineados, o sem-tempo, um sem-tempo que é o tempo presente, um momento em que não há passado nem futuro, em que qualquer acontecimento só pode ser excêntrico, despropositado, porque vem de uma desconexão que tem a propriedade de juntar precisamente por impedir a continuidade, por quebrar a linearidade. Para todos os efeitos, para obter uma forma é preciso dobrar uma linha. Platão falava de “linhas divididas” na sua Doutrina das Formas e essa noção ainda faz sentido hoje.