Paulo Chagas, génio da invisibilidade contemporânea

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Sabemo-lo há demasiado tempo: os poderes históricos desta ficção a que chamamos Portugal têm tido uma enorme dificuldade em reconhecer os seus valores – até com Camões, o poeta dos “Encobrimentos” e da nossa mitologia imperial, tal aconteceu; morreu na miséria. Mais uma vez, o bloqueio repete-se com uma figura da actualidade musical portuguesa de que não se fala, apesar da sua relevância: o compositor, improvisador e multi-instrumentista Paulo Chagas. Não que o cidadão de Peniche faça algo para o contrariar: o seu percurso tem sido feito nos túneis da música criativa e ele satisfaz-se com essa circunstância – investe a maior parte do seu tempo numa actividade socialmente preciosa, a educação auditiva de crianças com desafios cognitivos e neurológicos.

Os dois novos álbuns em que encontramos Chagas, no formato que parece preferir, o duo, comprovam a importância que este músico tem, ou deveria ter, no cenário nacional e nos das músicas inovadoras mundiais, ambos lançados no Bandcamp pelas netlabels Petroglyph Music, da Noruega (“Connections-Transcriptions-Lines”, com Markus Reineke) e Darkpebble-Bluewave, dos Estados Unidos (“Mirror”, com Wilhelm Matthies). O curioso é que estas duas personagens do experimentalismo mundial, um alemão (Reineke), o outro americano (Matthies), têm nos seus respectivos países um semelhante estatuto de desconsideração, facto pelo qual verificamos que não se trata apenas de um mal lusitano. Fazem outras coisas que lhes dão nome: Reineke é matemático e Matthies artista visual. Tal como com Paulo Chagas, e para nossa felicidade, essas dedicações reflectem-se de algum modo nas músicas que tocam.

Markus Reineke especializou-se no estudo das “representações da geometria do estremecimento” e dos “grupos quânticos” e o certo é que aquilo que encontramos em “Connections-Transcriptions-Lines” é uma aplicação da teoria da tremura, no caso da tremura do som, entendida enquanto produção de agitações acústicas. O instrumentário é invulgar, com as flautas de bisel baixo e contrabaixo, a guitarra na horizontal e o computador de Reineke a enovelarem-se quanticamente com o saxofone alto, o clarinete baixo e o oboé de Chagas. Digo “quanticamente” porque, por vezes, as fontes sonoras confundem-se, cada uma parecendo existir em dois estados simultâneos, ora por inter-relacionação directa ora por haver aparentes operações de sobregravação, o que quer dizer que tudo decorre por desdobramentos ou reduções (substituições de um estado por outro).

A música vai-se desenvolvendo numa zona anterior a qualquer construção frásica, ou seja, antes que haja linguagem e narrativa – é como que uma extensão dos mecanismos respiratórios, com o sopro a construir-se como uma respiração extensiva. E, no entanto, não podemos dizer que são desenvolvidas técnicas extensivas para o uso dos instrumentos. O primarismo deste sopro-respiração é tal, nas suas explorações ultrafocadas, que o que ouvimos se constitui como algo que só posso denominar “música intensiva”, edificada sobre “técnicas intensivas”. Está tudo concentrado nos timbres e nas texturas timbrais – são estas as condições de uma intensividade primordial que reconfigura a própria ideia de música, devolvendo-a ao que na essência é, organização de sons. Para todos os efeitos, tem sido esse o caminho seguido por Paulo Chagas, numa busca do que está antes das formas, da forma-clássica, da forma-jazz ou da forma-rock como mesmo da forma-música improvisada.

Também Wilhelm Matthies é avesso à música enquanto narrativa, preferindo a esta as qualidades da poesia (mais: de uma muito sua poiesis, no sentido de “aquilo em que me vejo”) e uma abordagem visual. A criação de artefactos e instalações conduziram-no à invenção e à manufacturação de instrumentos musicais (esculturas sonoras) com base em aspectos de outros da tradição organológica do planeta. É o caso da série de dispositivos a que chama “mosesa”, de que em “Mirror” encontramos uma variante, o maateesaa 1: uma armação de cordas (melhor se diria: de cabos) accionadas por meio de um arco ou por dedilhação. Este recurso, por vezes complementado pela percussão, permite-lhe uma cobertura de extremo a extremo: de um lado encontramos sucedâneos da trovoada, com a sua violência sónica e simbolizando a incontrolabilidade selvagem da natureza, e do outro um antropomorfizado sussurro, mais significativo como mistério humano do que, propriamente, como lamento existencial. Chagas move-se a meio, de novo com o clarinete baixo e o sax alto, mas também intervindo como pianista. De resto, muito efectivamente e em clara transposição de outro seu mister, aquele que vem tendo como poeta.

Sendo igualmente um álbum de improvisação, se bem que estruturada – ou, como refere Matthies a propósito do seu trabalho musical, «planeada» –, “Mirror” pode ser catalogado como algo da linhagem dark ambient. Nesta sua particularidade abraça-se já a uma forma, ainda que depressa observemos não haver qualquer familiaridade com os conceitos que estão por trás dessa categoria, os góticos. Se bem que de outro modo, também nesta edição assistimos a um retorno à caverna – os sons ecoam por entre paredes de pedra, mas mesmo que assim não fosse a guturalidade e a glossolália de Paulo Chagas são não só revificações pré-históricas como retomares de uma vivencialidade arcaica e xamânica. O que cabe muitíssimo bem num princípio metodológico de Wilhelm Matthies aqui perseguido: o momento que surge como «comentário da memória» de outro momento anterior. Nesta recorrência, rebentam com as premissas da música improvisada old school: nunca repetir.

Em suma, estamos diante de duas obras da vigência digital, internética e da “época do planetário” (Kostas Axelos) que são de enorme importância para compreendermos as músicas ignoradas – e ignoradas porque falta estabelecer um quadro que as entenda no presente reinado da indiferença e da superficialidade – deste tempo pós-tudo. Que um português esteja envolvido nesta demanda dá-nos a esperança de que haja um lugar para este canto da Europa na interconectabilidade global do que interessa. Mas não, os subterrâneos nunca percorrerão a céu aberto as avenidas das cidades, e se tal acontecesse muito se perderia pelo caminho: a independência. É deixar Chagas e Reineke e Matthies, génios da invisibilidade contemporânea, onde estão. Na expectativa de que mais deles venha, ainda que seja ouvido por muito poucos.