Por mim visto nas Gaivotas 6, a 8 de Setembro de 2023, “Charlotte Forever”, de Rafaela Jacinto, é um espectáculo que tem como tema o fetichismo. Designadamente, o fétiche que a actriz e cantora Charlotte Gainsbourg tem sido para a artista que durante três dias o confessou (descreveu, explicou, imitou) em Lisboa. Primeiro como uma crush infantil não muito consciente, depois enquanto culto sexualizado, mas sobretudo esteticamente sublimado, a uma pessoa feita ideia que a vem conduzindo, como escreveu no texto de apresentação do projecto, como se fora a sua «âncora no fim dos tempos». Se daqui concluirmos que não há tempo depois de Charlotte não estaremos longe da sua visão. O registo foi confessional, o que não é habitual encontrar em palco, um lugar de fingimentos e de representações da alteridade.
Jacinto falou das primeiras vezes em que, ainda criança, viu filmes (sem ter idade para tal) com a filha de Serge Gainsbourg e Jane Birkin. Falou de quando a viu e ouviu em Paris, dos objectos que guardou dela, entre fotos, posters, folhas de sala e folhetos cinematográficos – alguns expostos, aliás, na mesa colocada diante da plateia. Falou da ex-namorada Marta (que interveio via Zoom a testemunhar do encontro com Charlotte, esta sob as luzes, o casal na penumbra da assistência, divididas no mesmo espaço pelas lógicas da fruição popular da música), realçando que, de perfil, esta se parece com a não-diva de “Anti-Cristo” e “Ninfomaníaca” – com projecções no fundo da sala a confirmarem-no. Disse que também a sua companheira anterior tinha afinidades faciais com o ícone da cultura francesa, mais um marco da “presença ausente” de Charlotte na sua vida amorosa. Disparou videoclips com Charlotte Gainsbourg a cantar e sobrepôs o seu próprio canto à da estrela pop, em tudo se assemelhando a esta.
A desmontagem artística, que nunca psicológica, deste fetichismo, ou deste feiticismo, porque como um feitiço o considera, já era, por si só, suficientemente aliciante. Para mim, teve ainda maior interesse o facto de este “espectáculo”, se assim lhe podemos chamar, não ter qualquer formato fixo. Não era uma performance, não era uma palestra, não era um concerto e, não sendo nada disso, teve aspectos de todos os três tipos de intervenção. Não era, na verdade, um espectáculo, ou era-o apenas na medida em que enquadrava um discurso e uma situação para os entregar a um público. Podia ser uma simples conversa em grupo, numa qualquer circunstância informal.
Este era um teatro esvaziado, um teatro sem teatro, um teatro de depois de toda a historicidade teatral. Tudo de especificamente dramático se reduziu a um único factor, a encenação. Não havia uma cenografia, mas foi essa condição que deu amplo lugar para o exclusivo elemento cénico: o corpo (e a voz) de Charlotte Gainsbourg, por via do corpo (e da voz) de Rafaela Jacinto. Charlotte estava em todas as partes: nas falas, na parede, na mesa, na imaginação do público. Não era um artefacto nem um símbolo apenas, era um invólucro.