Músicos do Tejo: Lateral thinking

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Atravessar Lisboa para chegar às Galinheiras, ao Alto do Lumiar, e no seu largo principal encontrar algo que, só pela descrição, seria um factor de desconfiança. O barroco do ensemble Os Músicos do Tejo cruzando-se com a música clássica indiana de Shashank Subramanyan. A problemática das chamadas “músicas do mundo” traz esta particularidade: basta ter um elemento étnico no que se ouve para que tudo se reduze a essa parcela, como se esta representasse o todo, nunca, na verdade, o conseguindo. Ou para que tudo aumente, o que vem dar no mesmo: a etnicidade configura a marca do que vai musicalmente, semioticamente, muito mais além, levando-nos a acreditar que toda a música é do mundo, de alguma forma.

Quando as músicas entrelaçadas em causa são síncrones no tempo (na actualidade), até que não é difícil reconhecê-lo, não obstante os paradoxos que podem advir e que muitas vezes são insolúveis. Mas, e quando o que se coloca em paralelo é a música antiga, especialidade de Os Músicos do Tejo, e a música da Índia de hoje, trazida pelas flautas bansuri de Subramanyan? O risco era enorme, só relativizado pelo facto de a música clássica indiana ter um forte esteio na tradição, reproduzindo os modos de um passado também longínquo (ou ainda mais distante).

No final da tarde de 9 de Setembro de 2023, no contexto do Festival Todos, estas questões pareceram ficar de lado, graças à inteligência do maestro Marcos Magalhães na organização do repertório. Tudo fez sentido devido ao colocar em prática de algo que poderíamos designar como “lateral thinking”. A música da Índia dá uma importância primordial à ornamentação? Sim? Então por que não entrar na questão por esse lado e colocar-lhe a par a música barroca europeia mais ornamental, a francesa? Foi isso que aconteceu, com obras de Couperin, Rameau e Marais, umas sem a intervenção do flautista convidado, outras com – neste último caso dando evidência ao emparelhamento da sua flauta de bambu com a flauta traverse de madeira, a primeira com as notas “para dentro”, como que sorvidas, e a barroca “para fora”, deixando-se transportar pelas melodias. Um esticamento da ideia levou a que se incluísse uma peça do próprio Subramanyan, o que seria de esperar, mas também uma composição de música contemporânea do finlandês Eero Hameennieme, escrita propositadamente para a formação.

Nas suas intervenções faladas entre temas, sempre didácticas e informativas, Magalhães destacou o facto de a música poder reunir, como condição própria, instrumentistas de várias paragens (a música barroca como música do mundo?): com os portugueses presentes estiveram o violinista ucraniano Denys Stetsenko, o violetista de origem japonesa Paul Wakabayashi, o violoncelista francês François Nicolet e o pandeirista norte-americano Jarrod Cagwin. No mesmo espírito, sustentou que a música antiga não pode fechar-se sobre o seu próprio mundo, que deve dialogar com o presente, uma justificação que cobriu as razões dos enlaces a que assistimos.

Não seria de esperar que aos paralelismos arquitectados se juntassem cruzamentos, hibridismos? Seria, embora nesta circunstância tivessem sido evitados, com certeza que para evitar anacronismos e estranhamentos. Quem cumpriu mais essa função foi Cagwin, mimetizando com os seus pandeiros as tablas da Índia, em interacção com Subramanyan. Aliás, esse foi um dos momentos mais interessantes e intensos da actuação.

Chegou esta circunstância para desfazer a percepção de que a categoria “músicas do mundo” é uma forma de nivelar a diversidade das músicas não-acidentais segundo os parâmetros de um capitalismo primeiro-mundista e altamente marketizado? E de que é uma caixa onde se colocam as músicas consideradas exóticas, convertidas estas em algo que podemos comparar com a cozinha dos restaurantes chineses para paladares não-orientais (com a música barroca também a surgir, por arrasto, como exótica)? Não. Mas foi, pelo menos, uma boa oportunidade para verificarmos que a multiculturalidade musical é possível quando existem, realmente, pontos em comum, pontos que se podem compartilhar e co-explorar. Acontece menos vezes do que se possa imaginar…