Em Portugal como no resto do mundo, a tendência dominante da livre-improvisação musical é aquela cujo corte epistemológico com o jazz (o free jazz, em particular) nunca chegou a ser efectivo em finais da década de 1960 e nunca foi resolvido até aos dias de hoje. Ou a tendência evoluiu como um pastiche do jazz, apenas dispensando a notificação prévia deste género, ou a ele foi regressando de algum modo. Exemplos podem ser Peter Brotzmann, que seguiu a linha introduzida por Albert Ayler e, por ocasiões (tem tido outros tipos de intervenção), Evan Parker, que cedo retomou o seu apreço pelo John Coltrane da última fase. No nosso país, são os casos de Rodrigo Amado, Luís Vicente ou José Lencastre, entre muitos outros.
Uma segunda linha, aquela que descolou da música erudita (“clássica”, insistem os norte-americanos) contemporânea, teve e tem semelhantes processos de relacionação com as suas origens, mas a escolha de um caminho mais experimental salvou-a de maior ambiguidade, como nos foram dando a ouvir AMM, Musica Elettronica Viva, Nuova Consonanza, New Phonic Art e Taj Mahal Travellers. Por cá, o mais emblemático grupo que a representa é o sexteto feminino (o adjectivo ainda importa num campo da música ainda e sempre dominado por homens) Lantana, uma derivação da contemporânea com incorporações da folk, do rock e da electrónica, esta de referenciação mais plástica do que propriamente musical.
Pois foi este colectivo que, a 15 de Setembro de 2023, marcou a sua rentrée na SMUP, concelho de Cascais, com um som bem consolidado e uma abordagem horizontal, isto é, sem hierarquias instrumentais, à improvisação que é de todo singular e indistinguível no plano nacional. Já tendo eu assistido a vários concertos do sexteto de Joana Guerra, Maria do Mar, Maria Radich, Helena Espvall, Anna Piosik e Carla Santana, posso dizer que este na Parede foi o mais bem conseguido até à data. Logo para começar, devido à forma como os factores efeito de conjunto e igualdade dos papéis não se sobrepuseram ao individualismo das vozes contribuintes, deixando-lhes toda a liberdade. Como bem sabemos, nos âmbitos político, económico e social, igualdade e liberdade são, regra geral, auto-excludentes. Uma música que as coloque par a par é uma utopia em acção, uma demonstração do possível face a uma realidade fracturada e distópica.
Além disso, Lantana é o produto artístico de um pensamento cada vez mais pertinente nos dias de hoje: o de um pós-humanismo que descentra a noção de humanidade para abarcar o todo da vida no planeta. Daí o nome Lantana, referente às flores selvagens que nos rodeiam, mesmo em contexto urbano, e daí a própria música que é dada a ouvir. A percepção/tradução visual que temos, até porque se trata de algo deveras cinematográfico, é a de um caudal que transporta em si todo o tipo de escórias, umas mínimas (a música do ensemble é, sobretudo, detalhística, liliputiana) e outras em massa, num desenvolvimento aparentemente estático que é, afinal, feito de múltiplas ocorrências, sempre mudando, uns cursos remetendo-nos, quase que numa lógica de causalidade, a outros – e por isso o equívoco, para alguns, de que há uma linha condutora pré-preparada, quando na realidade o que existe é escuta e reactividade no momento.
Podendo chegar a uma hora de duração (foi agora o caso), cada peça de Lantana é um rio ondulante cuja força só é controlada pelas margens, nele tudo cabendo numa amálgama sinestésica e imaginante: texturas, fragmentos de melodias, glossolálias, ecos, ruídos e ainda uma certa hantologia que convida as sombras a intervirem no que é primordialmente solar, por vezes até aproximando-se de um certo espectralismo, o de Dumitrescu e Radulescu. Tudo isto ocorre sem intenção, mas também sem aleatoriedade. O segredo é deixar que estas matérias sigam, apenas direccionando o que vem e logo vai. Há como que um armadilhamento do tempo, o sentido de um presente contínuo, mas sobretudo há espaço, espaço que ora se ocupa ora é desocupado. Espaço paisagístico, mas também atmosférico, de florescências ou de securas, vibrante ou em chiaroscuro, nos quais o bonito e o feio não importam mais enquanto categorias estéticas.
Lantana veio salvar a música improvisada do beco sem saída em que esta se meteu no nosso circuito, ostentando a sua rebeldia para com os padrões jazz vigentes, e isso só podia ser bom. O público parece já ter compreendido isso: estavam cerca de 70 pessoas na sala, o que para um concerto de nicho não é vulgar.