Florescências selvagens? Arranjos florais, com todo o método e requinte? O trio Flora de Marcelo dos Reis (guitarra, composições) com Miguel Falcão (contrabaixo) e Luís Filipe Silva (bateria) oferece, no seu álbum de estreia – também chamado de “Flora” – um pouco das duas realidades vegetais. As estruturas e os temas são como hastes e ramos, mas as improvisações sobre, entre e dentro vêm directas das raízes. Temos o melhor de dois mundos, o aéreo e solar e o de debaixo da terra, carregado de húmus. A música decorre como num fluxo de seiva. É bela (oiça-se a orientalista “Amanita” e, mais adiante, o início e o fim de “Cornelia”, com as suas bases em drone, assemelhando-se ao que ouvimos da tambura na música clássica indiana), mas vira-se de frente para o fogo.
Como já escrevi sobre o projecto, quando o ouvi ao vivo num dos primeiros concertos, fica indefinido se este é um grupo de rock que toca jazz ou um grupo de jazz que toca rock, e está bem assim. Tudo é ambíguo, equívoco, ambivalente e incerto. É uma música de riffs (“Tampanensis” e “Sky Blue Petunia” são bons exemplos) que também sabe ser introspectiva e uma música que se desconstrói experimentalmente sem jamais perder o swing – parece mesmo cortar de viés alguns campos musicais que, à partida, se auto-excluem. Parece? Não, não é apenas uma questão de cores e o que estas tapam ou fazem supor: o jardim dos Flora é expansivo. Quando uma particularidade surge, é como se se dirigisse uma câmara fotográfica para um pormenor.
Em poucos casos que eu conheça visceralidade e elegância se enovelam tão bem. Poesia bruta, dir-se-ia, feita sem dúvida com muito savoir-faire, mas mantendo aquele tipo de ingenuidade conceptual que permite a invenção e a descoberta. E há que falar de identidade: esta é uma música Flora, sem nada que se pareça com outras incursões jazz-rock, prog-rock ou collage-rock ou seja o que mais for em todas as tentativas de combinar rock, jazz e outras expressões musicais electro-urbanas. Música urbana isto é, sem dúvida, mas de parque ou de viagem até ao campo. O final faz-se, em “Full Sun”, com uma ida a África. Depois do último eco, voltamos ao princípio. Há uma serpente a ziguezaguear entre as plantas.