À falta de um Outonal, prolongamento do MIA – Encontro de Música Improvisada da Atouguia da Baleia na altura do ano em que as folhas das árvores começam a cair, a 9 de Dezembro de 2023 houve uma tarde de sessões no Conde Távora que deu pelo nome de Explorações Sonoras, e por justíssimas razões. O ponto alto da matiné foi a prestação de um grupo, sorteado tal como todos os restantes, que teve a presença de Patrícia Domingues. No início desta, um dos cerca de 15 improvisadores presentes envolveu o pescoço da cantora com uma grinalda de balões brancos, o que acabou por ser um acessório fundamental para o que viria a acontecer. A dado momento, Domingues foi mordendo balão a balão até os rebentar, disruptivamente, envolvendo assim duas componentes: a sonora e a performativa. Desta última muito tem vivido o espírito MIA nos últimos anos.
O arranque realizou-se com um quarteto formado por Maria do Mar no violino e três metais, a trompa de Catarina Silva, o fliscórnio de Luís Guerreiro e o trombone de Fernando Simões – uma combinatória de instrumentos bastante invulgar. Logo aí se destacou a figura da trompista, que há uns anos se estreara na improvisação numa das edições do MIA e fez muito percurso desde então com o núcleo de músicos das Beiras em que encontramos João Clemente, o mesmo de Slow Is Possible e Cat in a Bag. À vontade, já, nesta linguagem, foi imaginativa no encadeamento dos fraseados, entrosando com os restantes sopros na contrapartida que estes estabeleceram com a violinista.
O bem conhecido guitarrista, produtor e orquestrador Armindo Neves tocou logo de seguida, nesta sua primeira vez em Atouguia da Baleia. Na formação que lhe calhou estiveram Julian Davies-Percy com guitarrismos de tipo industrial, altamente contrastantes com as suas filigranas dedilhadas, Pedro Marques, que introduziu figuras rock com a seis-cordas, e o baterista Mário Rua, este escolhendo uma trama de pontuação do que era dito. Depois, vieram Paulo Chagas na flauta, Paulo Pimentel ao piano, a já referida Patrícia Domingues e a igualmente vocalista Maria Perdigão, habitante da vila a dar, e bem, os primeiros passos na música espontânea. A actuação viveu das ambiências criadas, aéreas, vibrantes e em certas passagens algo pastorais.
A mudança para o que demais sucederia fez-se com uma intervenção poética de Manuel Guimarães, lendo simplesmente o rótulo de uma garrafa do tinto Euphoria. Sentou-se ao piano com a companhia de Paulo Galão no saxofone alto, João Pedro Viegas no clarinete baixo e a dupla guitarrística de Nuno Rebelo e Guilherme Carmelo: tudo resultou, sem dúvida, numa intervenção eufórica, ou pelo menos de um certo inebriamento feliz que parecia induzido pelos vapores do álcool. Em máxima evidência estiveram as peculiares soluções sonoras do ex-Mler Ife Dada, indo para além do que julgamos uma guitarra poder fazer acusticamente. Mais uns papéis tirados do saco e o que calhou foi um número de blues-swing com Perdigão, Simões, Neves (trauteando as notas que tirava do seu instrumento) e Guimarães – improvisar livremente também pode ser sobre a tradição. Não havia abordagens proibidas.
Mais um quadro e um quarteto com duas palhetas, o saxofone alto de Chagas e o clarinete de Galão, com Silva e Rua, num jogo de timbres centrado no som e nas suas propriedades. Foi logo após que chegaram os balões, com Domingues também a utilizar uma cadeira na qual procurava enfiar-se, em ligação com Mar, Carmelo e Rua, naquela que foi uma das voltas mais intempestivas e ovacionadas da tarde. A adrenalina provocada contaminou os sorteados que se apresentaram minutos depois: Guerreiro, agora fazendo amplo uso da sua electrónica, Rebelo, Pimentel e Viegas. Sobressaiu o guitarrista, que deu asas aos seus múltiplos recursos, ficando para o que se escutaria na sequência, ao lado de Marques, Simões e Domingues, uma composição instantânea que lentamente se alicerçou sobre texturas até ir para outros lados de formas muito naturais.
Alteração de protagonistas, para aquela que foi uma das formações mais curiosas do Explorações Sonoras, em registo impressionista, com Maria do Mar, Catarina Silva, João Pedro Viegas, uma Maria Perdigão a soltar-se e a ganhar relevo e Armindo Neves. Neste contexto, há a assinalar o notável entrosamento do violino e da trompa: de resto, e ao que apurei, a colaboração entre as duas improvisadoras terá próximos desfechos. O final chegou em modo free jazz, lembrando a Chris McGregor’s Brotherhood of Breath sem as características melodias sul-africanas: dois sax altos (Chagas, Galão), um fliscórnio processado (Guerreiro), uma guitarra (Carmelo), um piano (Pimentel) e bateria (Rua). O fecho deste MIA de Natal não podia ter sido mais galvanizante, na sua intensidade, na massa conseguida e no que teve de celebratório e festivo.
Já dizia Yehudi Menuhin que a improvisação é «a expressão de desejos e sonhos acumulados, bem como da sabedoria que está na alma». Ou seja, o contrário do que alguém no público lamentava, o não entender este tipo de música para poder apreciá-lo devidamente. Não é preciso entender, mas sentir, e o que se passou no Conde Távora foi um festival de emoções, de peles reactivas, de almas em comunhão.