Último dia do Spectra LX, na Casa do Comum, a 28 de Janeiro de 2024, iniciativa da label Creative Sources. Duas propostas assaz aliciantes: a reunião da pianista Luísa Gonçalves com Miguel Mira no violoncelo e Joana de Sá no saxofone soprano e a estreia pública do novo grupo de Maria do Mar com Catarina Custódio Silva, trompa, e Ana Gonçalves Albino, guitarra eléctrica. A violinista tinha encontrado a primeira num par de actuações sorteadas no final do ano passado no “MIA de Outono”, evento designado como Explorações Sonoras de que mais abaixo encontram a reportagem. Em Novembro de 2022, Albino fora convidada por Mar e Felice Furioso para um episódio da série DeScomposição Transitória, na SMUP, juntamente com Astronauta Mecânico e o seu videomapping. Nas duas ocasiões, afinidades musicais logo surgiram – a constituição do trio foi um passo natural, ganhando, entretanto, um nome, Arpyies.
O concerto de abertura foi de concentração absoluta, muito lento e pausado, só não seguindo à letra as estratégias do chamado near-silence, uma tendência da música improvisada de que a editora e os muitos festivais de Ernesto Rodrigues chegaram a ser uma das frentes internacionais, devido à profusão de sons que iam suavemente vibrando no ar. Optando por uma abordagem textural, só contradita por breves fraseados de Sá, ficou instalada uma ambiência onírica de grande beleza, que nos desenvolvimentos muito focados se dissipou para dar lugar a uma operacionalidade ensimesmada. Gonçalves interveio entre o teclado e o interior do piano, por vezes introduzindo ligeiras preparações que complexificaram a relação entre os dois parâmetros, Mira explorou os planos laterais oferecidos pelo corpo do seu instrumento e Sá chegou a tocar o saxofone sem o bocal ou o bocal sem o saxofone. Foi interessante de seguir, mas não houve surpresas.
As expectativas estavam viradas para o que seria o novo projecto de Maria do Mar. Em alto contraste com o que acontecera antes, a actuação de Arpyies começou no vermelho, em termos de volume e intensidade. Mas logo baixou para só subir ocasionalmente, e alturas houve de entrega total ao silêncio, este assim tornado em matéria musical. Também se privilegiou a elaboração de texturas, mas as intervenientes não se coibiram de frasear, em reminiscências das formulações da clássica, do jazz ou do rock. A meio de toda a abstracção, um motivo melódico sugestivo, que podia ser da pop, foi introduzido pela guitarra e esse contraste teve um efeito desmesurado. Esta era uma música que nada excluía do seu caudal, que não proibia, que estava aberta a todas as possibilidades.
Feita de subtilezas, mas muito presente, a música revelada pelo trio Arpyies consistiu num mergulho no Som e nas formas possíveis de o organizar, transmitindo uma boa energia tanto nas suas manifestações mais impactantes como naquelas que nos levavam a debruçar-nos a atenção sobre os pequeníssimos pormenores. A associação de um violino, uma trompa e uma guitarra cheia de efeitos electrónicos é altamente invulgar, e o leque tímbrico proporcionado foi a primeira grande surpresa. Mar estava completamente dentro da música, de tal modo que nunca lhe víamos os olhos – cabelos diante do rosto, voltada para si mesma e para o que tocavam as suas parceiras, entre reacções instantâneas ao que faziam e deixas que estas pegassem, o que fez com o violino esteve entre o melhor que já lhe ouvimos. Catarina Silva tirou do seu metal pesado muito mais do que a função que o modelo orquestra sinfónica lhe destina, a coloração. Se a jovem improvisadora vem desse universo, tornou a trompa – em contexto português, terra de ninguém – num instrumento solista, no seu caso particularmente poderoso. Ana Albino é uma guitarrista de amplos recursos, alternando com igual desenvoltura a limpidez cristalina das suas dedilhações e o sujo de um noise controlado pelo rodar de botões da pedaleira.
Arpyies tem pés para andar e constitui, de facto, uma novidade no panorama nacional da livre-improvisação. Novidade só não chegaria – a cena está cheia de novidades sem conteúdo –, mas neste caso ficou atestada também a qualidade e a singularidade desta iniciativa. Esperemos que as portas se abram a estas hárpias e que os ventos as transportem, porque merecem e porque é necessário agitar as águas de uma prática cada vez mais conformada com o mesmo, inúmeras vezes repetido e repetido e repetido.