Seguir o rasto de um punhado de músicos da improvisação durante um determinado período de tempo é verificar toda a essência móvel, realizada por imbricações e desdobramentos, que define e autonomiza esta abordagem espontânea à organização dos sons. Não é simplesmente de um nomadismo que se trata – no caso, um nomadismo por Lisboa, numa trajectória por locais vários –, mas de um devir interrelacional que, longe de ser derivativo, vai ganhando um sentido global ao longo dos seus trânsitos. Esta estória teve começo a 10 de Janeiro deste ano no Wonderpuppet, atelier, galeria de arte, sala de concertos e bar conduzido pelo pintor e músico nepalês Sunil Pariyar. Este juntou a si a cantora Patrícia Domingues, a violinista Maria do Mar e o pianista Manuel Guimarães numa sessão que logo se anunciou premonitória. Num aspecto em particular: a confluência da linguagem abstracta muito específica da música livremente improvisada com o tonalismo melódico e as pontes lançadas a outras músicas, por meio das citações tão humorísticas quanto desconcertantes utilizadas por Guimarães no seu teclado, pelas recorrências indianas e operáticas na voz de Domingues, pelas heranças bartókianas de Mar ou pelo uso do cajón do flamenco por parte de Pariyar.
No mesmo local, a 24 de Janeiro, o anfitrião tocou as suas flautas bansuri num grupo que reuniu as mesmas Patrícia Domingues e Maria do Mar, o violoncelo de Helena Espvall, o trompete de Davide Stefani e as tablas de Miguel Lourenço. Modalismos e cromatismos estiveram em equação no onirismo ondulante da música entretecida, nela se diluindo experimentação e tradição, designadamente a da música clássica da Índia. Não tinha havido qualquer ensaio nem se definiram linhas de rumo: tudo aconteceu sem rede, em absoluto risco, e a magia da improvisação teve lugar. Nem sempre é assim em primeiros encontros, mas este foi particularmente feliz, com Espvall encenando atmosferas que deviam muito ao psicadelismo. Como explicar o entrosamento conseguido sem ser com argumentos metafísicos, como aquele de Max Picard segundo o qual «no próprio som há uma prontidão a ser chamada pelo espírito, que é o que de mais sublime nos dá a música»?
Deste conjunto de nomes foi através de Maria do Mar que veio uma implicação, a 9 de Fevereiro, no Cinema Fernando Lopes da Universidade Lusíada: a sua parceria com Adriana Sá no zither, na electrónica e no vídeo 3D, Michelle Lewes King nos pontos de acupunctura tornados sons e Jonas Runa num simples berimbau de boca. Arte, ciência e tecnologia enovelavam-se de uma forma aparentemente mais materialista (pelo menos mais justificada e intencionada), mas entregando-nos algo de inerentemente misterioso e enigmático, de uma beleza que já não a inventada pela Grécia Antiga. As emanações voláteis, etéreas mesmo, de som interferido por ruído, remetendo para o visual (incluindo ocasionais strobs de luz), tinham como trigger as procuras de energia eléctrica por uma agulha ligada a um computador nuns quantos voluntários do público que eram perscrutados na testa, no queixo, nas mãos, nos braços. O violino como que baixava o centro de gravidade destes procedimentos, ligando-os à caracterização acústica original da música e à história desta.
No dia a seguir, 10 de Janeiro, desta feita no Misturado, Mar reencontrou-se com Patrícia Domingues, Helena Espvall e Manuel Guimarães, com a adição de Noel Taylor (membro da London Improvisers Orchestra e por vezes seu condutor) no clarinete e Baltazar Molina na percussão. O que antes se delineara ganhou uma nova configuração: texturas, melodias e ritmos obtiveram igual e pleno terreno numa formulação musical alheia ao não-idiomatismo que, equivocadamente, a primeira frente da livre-improvisação quis dar a esta tendência surgida em finais da década de 1960. De outra forma que não as previamente tentadas: os idiomas não eram explícitos, estavam diluídos nas tramas, como reminiscências de reminiscências. Mesmo os instrumentos melódicos acrescentavam pinceladas da memória para de imediato recuarem antes de se completar uma qualquer significação estilística.
Um salto até 23 de Fevereiro, quando, na SMUP, Taylor e Mar se juntaram a Nuno Rebelo, ex-Mler Ife Dada, compositor de música de cena e guitarrista-improvisador, e Eugene Martynec, arranjador e produtor do Canadá que colaborou com Lou Reed no álbum “Berlin”, no qual o ouvimos em guitarra e baixo. Com um laptop, uma controladora e um vasto banco de sons, este funcionou como um orquestrador, ora accionando samples de harpa, contrabaixo, piano, sinos, marimba e outras percussões de madeira, ora lançando para o ar sínteses de dimensão sinfónica que agiam como fundo, tecto ou alicerce de tudo o mais que acontecia. Dele e de Rebelo emergiram os grooves escutados, com Noel Taylor e Maria do Mar emparelhando em eficazes situações de lirismo tonal. Quando eram a guitarra preparada e com efeitos e o violino que se combinavam, uma bricolage sonora resultava dos pizzicati, dos batimentos, da amplificação de uma caixa de música e de um diapasão. Em questionamento, neste concerto, a perspectiva materialista da música: «Se o materialismo musical é verdadeiro, então as obras não são mais do que as suas partes ou manifestações concretas», segundo Chris Tillman e Joshua Spencer. Como em palco a improvisação não faz “obra”, não sendo também uma manifestação parcelar de coisa alguma, o dito materialismo musical revelava-se falso.
Dois dias depois, numa edição da Lota organizada pela editora discográfica Robalo na Penhasco, Martynec, Rebelo, Mar e Taylor voltaram a encontrar-se no mesmo espaço-tempo da música. A abertura foi realizada com um solo performativo de Maria do Mar, um ritual violinístico em que também utilizou voz (terrífica, vinda dos confins da sombra), movimento e uma colagem de field recordings, frequências para relaxamento, beats electrónicos e coro africano que culminou num tema de hip-hop para o qual o público foi convidado a dançar. A actuação teve início com a ausência física da artista, por meio de pancadas não-parametradas no corpo do violino algures nos bastidores, e culminou com uma muito presente e muito simbólica lavagem das mãos e do rosto numa tina transparente de água. Para a autora esta era uma performance de reinício, um feitiço da sorte bastante afirmativo e empoderador. Na t-shirt que vestia lia-se “La Bicha”.
Martynec e Rebelo tocaram mais adiante em duo, numa prestação pontilhística, mas ultra-condensada, em cujo caudal se incorporaram dois acidentes, o tombo da garrafa que o primeiro tinha junto a si e um feedback da guitarra feita microscópio de eventos sónicos do segundo. O abstraccionismo tacitamente escolhido teve a oposição de um estruturante contrabaixo, figura que prolongou o teor jazzístico da intervenção anterior pela dupla de sopros de José Soares e Gonçalo Marques, que desenvolveu um “isto e aquilo” desembocado num “isto daquilo” com pontuações da acção musical por fragmentos poéticos. Um gesto de convite do laptopper e do guitarrista levou depois a que Marques, Taylor e Mar se lhes juntassem para o clímax da tarde, naquela que foi uma extensão do trabalho realizado na SMUP, desta vez emergindo um órgão virtual (uma metáfora de ascensão espiritual) da máquina do músico canadiano. Com o seu trompete, Gonçalo Marques parecia já estar envolvido com o Som do quarteto, constituindo com o clarinetista e a violinista uma força dianteira de especial maleabilidade expressiva. Juntos, confirmaram um dito de Platão: «Foi com a música que começou a indisciplina.»