Paulo Curado: quando a música junta

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Paulo Curado deixou, decididamente, uma pegada funda nesta parte do mundo em que vivemos e que ele deixou na passada semana, sem ter verdadeiramente deixado. No sábado 9 de Março de 2024, dia do seu funeral, uma jam de homenagem que teve lugar no Teatro da Voz, em Lisboa, reuniu músicos do jazz e da improvisação livre como João Paulo Esteves da Silva, José Salgueiro, Hernâni Faustino, Mário Franco, Carla Santana, José Bruno Parrinha, Ba Álvares, Maria Radich, Gonçalo Marques, Pedro Carneiro, Inês Nogueira, João Valinho, Maria do Mar e João Esteves da Silva, entre outros. Em pouquíssimas outras ocasiões tivéramos a possibilidade de encontrar no mesmo palco figuras de ambas as áreas. O facto de o Paulo os ter reunido é especialmente significativo a respeito da sua personalidade musical, que era gregária e associativa. Um exemplo.

Todos os três filhos do flautista, saxofonista e compositor tocaram, Miguel (bateria), João (baixo) e Catarina (voz). Presentes estavam ainda Carlos “Zíngaro”, Nuno Rebelo, Helena Espvall, Sérgio Pelágio, Monsieur Trinité, Paulo Galão. Vídeos e fotos de Curado ao longo dos anos foram projectados na parede negra do fundo, indo desde os tempos dos Shish de José Peixoto. Esta despedida em catarse envolveu também personalidades das outras artes com as quais Paulo Curado colaborou, designadamente o cinema de animação, o teatro e a dança. E como que a lembrar que teve também uma importância incontornável na criação de música para crianças, participando por exemplo no brilhante “Bom Dia Benjamim”, muito jovens (por volta dos 12 anos de idade) aprendizes de música entraram em cena – hesitantemente no início, mas ganhando confiança enquanto tocavam e desembocando num transe que mereceu as palmas surpreendidas e encorajadoras dos assistentes.

E o que mais se ouviu? De tudo um pouco, do mais “dentro” ao mais “fora”, do melodismo misterioso de uma impro em que João Paulo retirou timbres de flauta e de guitarra de um teclado ao impromptu de outra formação espontânea em que o seu filho João se destacou num tema de vigoroso e desconjuntado groove, o mais experimental da sessão.

Enquanto se ouviam trechos da sua música gravada, no velório do dia anterior os amigos, colaboradores e admiradores do músico encontraram na parede um seu escrito sobre a prática da improvisação que é de especial importância. Cito uma passagem: «Para mim é aqui que as coisas se tornam interessantes, ou seja, na improvisação colectiva, na invenção de temáticas (…) relevantes e interventivas, não só do ponto de vista dos objectos sonoros criados, mas também da afirmação política e social da existência da liberdade total (…). Outra razão para ser improvisador, em vez de intérprete de música, é a inexistência de mapa para percorrer o território. É a criação de realidades, em vez da sua recriação. Não se ensaia (repete), mas necessita-se de uma elevadíssima preparação, não para a ultrapassagem das dificuldades que se conhecem, que é o problema dos intérpretes, mas para eventualidades totalmente desconhecidas. Este é para mim o desafio.»

Estas ideias podiam ser fracturantes, separando os improvisadores dos músicos de jazz que utilizam partituras como base das suas improvisações a solo ou em grupo, mas foi o contrário aquilo que aconteceu ao longo das décadas em que Paulo Curado esteve no meio das evoluções da música criativa portuguesa. Como se verificou na muito concorrida jam session, teve o respeito de todos e difícil é contar os que quiseram tocar com ele. No domínio especificamente musical, manteve parcerias com os já referidos José Peixoto, Carlos “Zíngaro”, Nuno Rebelo, João Paulo Esteves da Silva e Sérgio Pelágio, lista a que devemos adicionar Pedro Gonçalves e Bruno Pedroso (membros do Paulo Curado Trio), Rodrigo Amado (com quem gravou dois discos), Mário Laginha (que esteve com ele e com João Paulo na Orquestra Almas e Danças), Paulo Chagas e João Pedro Viegas (com quem formou o Wind Trio) e Abdul Moimême (que participou no Improvisers Consort). Até figuras cimeiras da música popular portuguesa o chamaram: Carlos Paredes, José Afonso, José Mário Branco, Janita Salomé, Júlio Pereira, Jorge Palma.

Na música de cena, Paulo esteve com João Fiadeiro, Mónica Lapa, Amélia Bentes, Teresa Sobral, António Feio, Suzana Borges, Jorge Silva Melo. Compôs bandas-sonoras para filmes de Nuno Amorim, José Pedro Carvalheiro, Cristina Teixeira, Isabel Aboim, Rui Martins, Humberto Santana, Ricardo Branco. É uma referência interartes e intermúsicas, e se em vida a sua presença influenciou de vários modos o que se passava à volta, acredito – e um indício disso foi já o que aconteceu no sábado passado – que o seu legado vai fazer-se sentir por muito tempo, começando pelos seus próprios filhos.

Levou-o, prematuramente, a Coreia de Huntington, uma doença degenerativa do sistema nervoso central que se revela por meio de movimentos involuntários e espasmos: foi por isso que deixou de tocar, o que para si representou uma morte em vida. Conheci-o em criança, quando morávamos no mesmo edifício e frequentávamos a mesma escola em Nacala, cidade portuária do Norte de Moçambique. Voltámos a conhecer-nos em Lisboa, sem nos lembrarmos dessa comum e remota circunstância – foi no início da actividade da associação Granular, a cuja direcção eu pertencia, e ele ia participar num festival que teve lugar na ZDB. Fez-se luz quando, mais tarde, viajávamos juntos para uma acção didáctica do Portugal Jazz nos confins do Minho, uma série de eventos por todo o País, organizada pelo JACC, em que tive igualmente como parceiros Miguel Leiria Pereira e Nuno Torres. Tínhamos vagas memórias que, em conversa, e com um telefonema de confirmação para a minha mãe, se completaram: a vizinhança, a escola e um episódio de que me ficara um sentimento de culpa. Desafiei o Paulo para saltar o muro lateral do nosso prédio a fim de irmos para as aulas. Ele hesitou, mas fê-lo. Aterrou num caco de vidro escondido pelas moitas e rasgou a palma de um pé. Pedi-lhe desculpa; ele deu-me, tantos anos depois. A música junta as pessoas.