Flash 1: Parecia um corvo. Com o rosto coberto por um véu negro que lhe caía quase até aos pés, a figura que tínhamos diante de nós ora manipulava botões e manípulos ora segurava o microfone com as duas mãos, quase o engolindo. Quando abria os braços era como se asas se levantassem e aquele espectro de luz e sombra fosse sobrevoar a curta distância que o separava da assistência. Gritos lancinantes, urros, lamentos e glossolálias misturavam-se com os arfares de um realejo e as sinusoidais de uma electrónica em apoplexia. Quando o ruído se faz música é ainda ruído? E quando colocada em mise-en-scène, a música é o quê? Performance? O dinamarquês Wilhelm Dahl colocou-se na intersecção de várias fronteiras, e atravessou-as. Foi tudo muito breve, rápido e extremo: quase sem darmos pelo furacão que estava de passagem, tínhamos já derrubadas umas quantas certezas. Um recém-chegado contribuinte ao núcleo de trabalho Profound Whatever.
Flash 2: Uma parceria com o Cineclube da Gardunha. No fundo do palco, as imagens de “Ménilmontant”, filme de 1926 do russo Dimitri Kirsanoff que conta a história de duas irmãs vítimas de uma sociedade patriarcal e injusta. Uma história em que até a personagem masculina provocadora da intriga tem um triste fim. No palco, ¾ da banda Made of Bones, ou seja, João Clemente (guitarra), Nuno Santos Dias (Waldorf, um piano eléctrico aparentado com o Wurlitzer e o Rhodes) e Duarte Fonseca (bateria), musicaram ao vivo a película. Seguiu-se uma trilha de seccionamentos musicais segundo a partição dos planos e das sequências de Kirsanoff e de encadeamentos de intensidade acordados com a narrativa, umas vezes para provocar um excedente emotivo, outras em jeito de comentário. Com uma condição escrupulosamente seguida: não ilustrar, à boa maneira das colaborações música/dança de John Cage e Merce Cunningham.
Flash 3: David Hull, colaborador de João Clemente em diversas situações que combinaram poesia e música nos últimos anos: “Things We Only Conceive at Night or How to Become a Ghost Cat Statue”, “Paraffin Wax”, “Doodled and Giggled”, “Let Them Eat Chicken”, “Obelus Gag”. Uma voz e uma guitarra, simplesmente. Canções folky entregues com uma atitude punk de reconfortante displicência, e digo reconfortante no sentido de que assim se distinguia da perfeição formal pop. Aos pés, o cantautor tinha uma resma de papéis impressos já muito manuseados. Entre os temas, estranhas e rápidas afinações do instrumento: Hull desistia de fazer melhor por tédio. A voz era o mais importante: vulnerável e “sem merdas”, tal como era o mote do festival, se bem que teatralizando as suas próprias fragilidades, e com um grão que parecia querer levar o registo tenor para o alto. Uma aparição desarmante de tão demasiadamente humana.
Flash 4: Uma escada de ferro entre as paredes internas de cimento e as externas de vidro do edifício da Moagem. Em baixo, o grupo Arpyies de Maria do Mar, Catarina Silva e Ana Albino jogava electroacusticamente com a reverberação do espaço, executando uma partitura de colagens em cartão escolhidas pelo público. Estabeleceu-se uma massa total de som, o da música moldada pela arquitectura, mas com transparências que permitiam identificar por dentro, individualmente, as importações do violino, da trompa e da guitarra eléctrica. De repente, tudo se transformou: algo fora acrescentado, fazendo com que se formassem nuvens de harmónicos a partir dos já tão integrados timbres. Percebeu-se porquê quando os olhos se ergueram e descobriram Luiz Rocha e o seu clarinete no cimo da escadaria, lembrando o Nu descendant un escalier de Marcel Duchamp. A nossa percepção entrara num plano de mistério. Algo que dizia muito ao convidado do trio: «Às vezes pergunto-me se um concerto seria diferente se uma das pessoas que nos ouvem não estivesse lá. Eu acredito que sim.»
Flash 5: Penumbra. De frente, três computadores. Dos lados, uma régie electrónica, um teclado, uma guitarra e um baixo. De costas para o público, dirigindo, João Clemente, a figura por detrás de todas estas movimentações. A peça era da autoria de Rui Dias, professor do Curso de Música Electrónica e Produção Musical da ESART, e o grupo que a interpretou, designado como Ocean-Chart Laptop Ensemble, incluiu Guilherme Hacchi, Anturio Earendel e Henrique Zhyvitski, os três laptoppers, e membros do Colectivo Profound Whatever, designadamente Gonçalo Baptista, Nuno Santos Dias e Nuno Jesus. Música composta de linha erudita com adição de elementos de improvisação idiomatizados no rock, tão rigorosa quanto de livre transposição de universos musicais que habitualmente se ignoram. Tudo fez sentido, tudo cabia na lógica desta Profunda Qualquer-Coisa que acontece para os lados do Fundão.
Estes foram apenas cinco momentos dos muitos que integraram a terceira edição do festival Profound Whatever, que teve lugar na Moagem do Fundão entre os passados dias 30 de Maio e 1 de Junho. Percebia-se que havia trabalho anteriormente realizado e que estava ali uma comunidade de músicos: por mais que se distinguissem musicalmente, os projectos locais – uns fixos, em forma de banda, outros flexíveis – tinham as particularidades comuns de uma identidade já estabelecida. A aventura começou em 2005 quando um punhado de estudantes de música se congregou na Escola Profissional de Artes da Beira Interior (EPABI, Covilhã) em volta do guitarrista e compositor João Clemente. Nesse núcleo original estavam Nuno Santos Dias, Duarte Fonseca, Tiago Rodrigues, Edgar Ferreira, Ricardo Sousa e Nuno Jesus. Outros se foram juntando ao longo dos anos, tendo como consequência cada vez maiores sinergias. A primeira grande manifestação destas actividades foi o grupo Slow is Possible, com discos editados pela JACC Records e pela Clean Feed que muito deram que falar. Em Portugal e lá fora descobria-se que havia uma cena à parte na Serra da Estrela. Pedrada no charco.
Outras formações surgiram em cadeia: Cat in a Bag, Salad Ensemble, Japanese Ducks, Made of Bones, Street Fight, Saturation Divers, TMR & The Sea Wolves, Deambula, Flower Garden Sextet, Golden Dark, Articulation of Attack, Shapeless Man, Coffee and Cigarettes. No ADN destas células operacionais combina(va)m-se elementos de tendências do rock como o psicadélico, o punk, o metal ou o prog com o jazz, a música livremente improvisada, vários experimentalismos acústicos e electrónicos, a música erudita contemporânea, a folk, a pop inclusive. São já 75 os álbuns disponibilizados na página do Bandcamp do Profound Whatever. Alguns deles foram gravados ao vivo nas edições de 2022 e 2023 do festival, outros saíram do estúdio que João Clemente tem montado em casa na aldeia do Pesinho. Em CD, aos dois títulos publicados dos Slow is Possible juntaram-se agora o disco homónimo de estreia dos Japanese Ducks e a compilação “Diving Horses”, resultado de uma residência artística realizada há um par de anos no qual encontramos alguns nomes que estiveram agora em palco, como Gonçalo Baptista, Gabriel Neves, Gonçalo Alves, David Lourenço e Catarina Silva. Foram os três primeiros que abriram o Profound Whatever 2024 com a fórmula Deambula e reencontrámo-los noutros momentos. Lourenço tocou com Arcana Lyra, ao lado da contrabaixista Júlia Miranda, e Silva esteve com as já mencionadas Arpyies e foi ressurgindo em outras oportunidades.
Se Deambula, Japanese Ducks (João Clemente, João Lucas, Duarte Fonseca), Made of Bones e a mescla dos duos Pespakova (com apenas Gonçalo Parreirão, na ausência de Ricardo Brito) e Saturation Divers (João Clemente, Gonçalo Alves), adicionando-se extraordinariamente o baixista Nuno Jesus, apresentaram os seus respectivos repertórios, já os ensembles programados tiveram como pressuposta a improvisação, por meio de (re)combinações das presenças no festival. A Maria do Mar, Ana Albino, Gonçalo Baptista, João Lucas (admirável no contrabaixo) e Nuno Santos Dias juntou-se um, desta vez discreto, Wilhelm Dahl. Ao reformulado Flower Garden Sextet, com Maria do Mar, Luiz Rocha e Gonçalo Alves nos lugares de Francisco Ramos, Laura Matos e Patrick Ferreira, mantendo-se Catarina Silva, Francisco Silva no violoncelo e Júlia Miranda, adicionou-se David Hull. Só na actuação do Black Square Ensemble, com Alexandre Ramos, Tiago Rodrigues, Catarina Silva, Edgar Ferreira, Gabriel Neves, Nuno Jesus e Júlia Miranda, ficou perceptível que havia estruturas de base – mínimas, rítmicas sobretudo, e tendo que ver com a intervenção densa e sombria de dois baixos eléctricos e um contrabaixo.
Destes dois eixos de programação destaco dois concertos, o dos Japanese Ducks do lado dos projectos permanentes e o do adaptado Flower Garden do outro. O trio de guitarra, baixo e bateria funcionou como uma máquina de decantação das microlinguagens do rock: percorrendo a distância que ia entre as dedilhações radicadas nos blues e na folk e as explorações abstractas da distorção e do sinal eléctrico, a prestação viveu tanto das esperadas dissonâncias como da meticulosa elaboração de motivos, valendo tanto os riffs e as muralhas de ruído como as desconstruções melódicas e harmónicas. De uma forma especialmente fluida, com excelentes transições de uma situação para outra, sempre em abertura de parâmetros e em renovação. O sexteto + 1 cobriu outro território, o de uma música de câmara imediatista (e, sim, exercendo a soberba arte da fuga) em que uns nós conduziam a outros, as mais das vezes contra todas as probabilidades – como quando a voz de Luiz Rocha através do tubo do clarinete baixo se casou com a voz levemente processada de David Hull, num feliz jogo de graves-agudos, quando a trompa de Catarina Silva e o clarinete baixo formaram uma frente particularmente impactante ou ainda quando o violino de Maria do Mar furava as associações das restantes cordas de arco e dos instrumentos de sopro.
O Profound Whatever deste ano não se ficou por aqui. Ouvimos ainda o quarteto de percussão LabOri, constituído por muito jovens estudantes da EPABI e coordenado por Vasco Fazendeiro, numa interessante aplicação das metodologias condutoras do Cobra de John Zorn, entre mostragens de folhas de papel desenhadas e gestualismos. Na tarde de sábado 1 de Junho ficaram arrumados cinco solos. Dois já descrevi acima, falta referir os de Ana Albino, Gonçalo Baptista e Robin Tolle. Entre a guitarra, o (ab)uso da pedaleira de efeitos e a introdução de spoken words por via de um telemóvel, Albino assinou um dos pontos altos do cartaz: uma “íntima miniatura” (assim se intitulava a série) tão leve quanto intrincada. Baptista, que antes escutáramos em versão hardcore, foi mais simples. Limpa e sem processamentos, a sua muito introspectiva guitarra eléctrica não andou longe das premissas do impressionismo. Tolle foi quem aterrou mais claramente na folk, só secundado por Etkar, a quem coube o fecho das operações Profound Whatever. Com a diferença de que o primeiro se colocava no nexo Bob Dylan/Nick Drake e o outro no de John Fahey/Robbie Basho. Ah, e ainda houve poesia sem música, apesar de entregue pelo mentor da banda Melífluo, Gonçalo Tavares. A música estava nos poemas.
Se os fundadores deste colectivo estão já nos 30 e muitos anos de idade, os que, a eles, entretanto se reuniram contam com 20 e poucos, pelo que todos os desenvolvimentos são possíveis com base na muito especial dinâmica criada. Era o que João Clemente me comentava, ironicamente, à despedida: «Talvez daqui a cem anos se entenda que o que estamos a fazer agora é a música tradicional desta região. Quem sabe? Seria curioso, não seria?»