With Strings: cordas de arco e improvisação

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Um tempo (entre o final da década de 1970 e o início da de 80) houve na evolução da música livremente improvisada em que as cordas de arco eram encaradas, por alguns, como instrumentos que não tinham lugar na nova linguagem, pois eram símbolos e reminiscências da música erudita e estava-se então em corte epistemológico com esta (e também com o jazz, de resto). O conflito chegava mesmo a situações de boicote e sabotagem, como aconteceu certa vez em que os violinistas Carlos “Zíngaro” e Takehisa Kosugi e o violoncelista Tristan Honsinger tocaram, na Alemanha, com Peter Brotzmann e Alexander von Schlippenbach. Brotzmann colocou o microfone na campânula do saxofone, pegou na herança free jazz de Albert Ayler, como era seu costume (a ruptura com os códigos do jazz fora menos decisiva), e os cordofones desapareceram na disrupção então ouvida.

Passado tanto tempo depois coincidiu que, no mesmo período de 2023, surgissem três discos em duas editoras, uma polaca, a Fundacja Sluchaj, e outra portuguesa, a 4DaRecord, em que a instrumentos vários (saxofones, flauta, clarinete baixo, piano) se juntassem violinos, os do mencionado Carlos “Zíngaro” e David Alves, violoncelos, estes de Ulrich Mitzlaff e Helena Espvall) e contrabaixos, nas mãos de Adriano Orru, Alvaro Rosso e João Madeira. Comecemos por “Duot with Strings”, edição em que o catalão Duot de Albert Cirera (saxofones tenor e soprano) e Ramon Prats (bateria, percussão) busca o complemento do ZARM Ensemble, constituído por “Zíngaro”, Alves, Mitzlaff e Rosso. Se a primeira faixa tem algo de Ligeti ou Berio, expoentes da clássica contemporânea, já a maior parte do restante conteúdo coincide com a free improv que não chegou a descolar completamente da “tradição” do free jazz. Ainda assim, fica com este álbum certificado que os cordofones podem ter outras gramáticas que não as de Conservatório ou de Loft, num uso extensivo de técnicas e num carácter exploratório que vem directamente de uma atitude experimental. Quem aprecia figuras como Leroy Jenkins, Billy Bang e Michael Sampson está aqui muito bem servido: foram eles que, violinisticamente falando, furaram as fronteiras do jazz, e o que ouvimos agora é a consequência já fora (com um pé dentro) desse território.

Algo diferente é “The House of Memory”, do quinteto Unknown Shore. João Pedro Viegas e Silvia Corda estão, respectivamente, no clarinete baixo e no piano, juntando-se “Zíngaro”, Espvall e Orru. A principal distinção está no embalo impressionista da música, em contraste com o expressionismo gutural de “Duot with Strings”. Tudo é mais pausado e reflexivo, e o que desde logo se verifica nas improvisações é o legado jazzístico, algo que vem sendo cada vez mais óbvio nesta área da música, fazendo supor, inclusive, um regresso às origens. Nem sempre: a faixa-título destaca as ambiências do impressionismo de Debussy e Ravel, como ainda de neoclássicos como Erik Satie, Paul Hindemith e Francis Poulenc, muito embora essa vertente atravesse as várias abordagens a um jazz sem pautas, num equilíbrio que chega a ter alcance poético. Pelo menos, e como felizmente mais uma vez se confirma, desapareceram da chamada “composição imediata” os complexos organológicos do passado.

“Open in Finder”, de Carlos Bechegas (flauta) com Mitzlaff e Madeira, começa por ser minimalista em termos de componentes, com apontamentos de som que mais adiante se conglomeram, ganhando forma e volume num crescendo interessante de seguir. Podia ser algo do pós-serialismo ou da new complexity, mas domina um pós-jazz feito de pinceladas, blocos sonoros, silêncios, respirações, pequeníssimos pormenores. A música é discursiva e narrativa, como numa banda-sonora para o cinema em que os próprios diálogos das personagens estão incluídos. De certo modo, este disco parece a síntese dos dois anteriores: tem poesia, mas também visceralidade; é a um tempo expressionista e impressionista. Mitzlaff e Madeira não se limitam a acompanhar o flautista ou a saírem individualmente para a frente: funcionam também semioticamente, como se cada instrumento fosse o gémeo-diferente ou o prolongamento do outro nas junções de escalas, contrapondo-se em conjunto ao flautista.

Afirmou o falecido Leroy Jenkins em entrevista, há uma trintena de anos: «As pessoas da clássica dizem que não sou clássico e as do jazz que não toco jazz. O que hei-de fazer eu?». Estes novos lançamentos debatem-se ainda com estas questões, mas vão um pouco mais além na sua resolução.